INTERCAMBIO PSICOANALÍTICO, 15 (1), 2024, pp 72 - 84
ISSN 2815-6994 (en linea) DOI: doi.org/10.60139/InterPsic/15.1.6
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TÁ NA RODA: INTERVENÇÕES
CLÍNICO-POLÍTICAS
EM ESPAÇOS EDUCACIONAIS
“TÁ NA RODA”: INTERVENCIONES
CLÍNICO-POLÍTICAS
EN ESPACIOS EDUCATIVOS.
“TÁ NA RODA”: CLINICAL-POLITICAL
INTERVENTIONS
IN EDUCATIONAL SPACES.
Perla Klautau
Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro
ORCID: 0000-0002-2734-5637
Correio electrónico: pklautau@uol.com.br
Data de Recebimento: 14-05-2024
Data de Aceitação: 26-05-2024
Para citar este artículo / Para citar este artigo / To reference this article
Klautau P. (2024) TÁ NA RODA:
INTERVENÇÕES CLÍNICO-POLÍTICAS EM ESPAÇOSEDUCACIONAIS
Intercambio Psicoanalítico 15 (1), DOI: DOI.ORG/10.60139/INTERPSIC/15.1.6/
Creative Commons Reconocimiento 4.0 Internacional (CC By 4.0)
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Resumo: Este artigo visa apresentar e discutir a implementação de
um projeto de extensão cuja ação principal é a construção de um
dispositivo de escuta grupal em curso de pré-vestibular comunitário.
A aposta deste projeto é que a escuta psicanalítica pode operar no
âmbito coletivo tanto como um instrumento de cuidado quanto
como um fazer político:
a construção de uma associação livre coleti-
vizada tem o potencial de atingir a dimensão singular e provocar um
efeito de subjetivação
. Isto permite criar possibilidades para o des-
locamento de posições cristalizadas no laço social e, também, para
a produção de interações coletivas criadoras de pensamento crítico.
Palavras-chaves: sofrimentos sociais; juventude; grupos operativos;
vulnerabilidade social; reconhecimento
Resumen: Este artículo tiene como objetivo presentar y discutir la
implementación de un proyecto de extensión cuya principal acción
es la construcción de un dispositivo de escucha grupal en un curso
preuniversitario comunitario. La apuesta de este proyecto es que
la escucha psicoanalítica puede operar en el ámbito colectivo tan-
to como un instrumento de cuidado como un acto político: la cons-
trucción de una asociación libre colectivizada tiene el potencial de
alcanzar la dimensión singular y provocar un efecto de subjetivación.
Esto permite crear posibilidades para el desplazamiento de posicio-
nes cristalizadas en el lazo social y, también, para la producción de
interacciones colectivas creadoras de pensamiento crítico.
Palabras clave: sufrimientos sociales; juventud; grupos operativos;
vulnerabilidad social; reconocimiento.
Abstract: This article aims to present and discuss the implementation
of an extension project focused on establishing a collective listen-
ing apparatus, with the participants being students in a community
university entrance exam preparation course. This project’s premise
is that psychoanalytic listening can operate in the collective realm
both as a care instrument and as a political act: the construction of a
collectivized free association process has the potential to reach the
singular dimension and provoke an eect of subjectivation. This al-
lows for the creation of possibilities for shifting crystallized positions
in the social bond and also for the production of collective interac-
tions that generate critical thinking.
Keywords: social suering; youth; operative groups; social vulnera-
bility; recognition
TÁ NA RODA:
INTERVENÇÕES CLÍNICO-POLÍTICAS
EM ESPAÇOS EDUCACIONAIS
Perla Klautau1
1 Psicanalista, Membro Efetivo
do CPRJ, Professora Adjunta do
Departamento de Psicologia Clínica e
do Programa de Pós-graduação em
Psicologia da UFRJ.
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Ponto de partida
O ponto de partida para a construção deste projeto foi a escuta de jo-
vens moradores da periferia da cidade do Rio de janeiro, com idades,
aproximadamente, entre 17 e 25 anos, em busca de um futuro pros-
sional1. Futuro este marcado pelo processo de retirada das redes de
proteção oferecidas pelo Estado em função da adesão, cada vez mais
forte, ao discurso neoliberal que propaga a ideia de um Estado mínimo,
enfraquecendo a rede pública de educação, cuidado e atenção básica.
Um Estado que não fornece garantias ao cidadão, passa a não ocupar o
lugar de conabilidade: enfraquecido, deixa o sujeito sem ancoragens,
sem garantias, em outras palavras, sem perspectiva de futuro. Isso faz
com que a incerteza, a desestabilização e o viver em condições precárias
gurem como marcas cotidianas da realidade dos jovens em questão
que, apesar de tais adversidades, continuam enfrentando a cobrança de
um bom desempenho e de resultados favoráveis. Movidos pela aderên-
cia aos ideais de desempenho e produtividade, os jovens escutados se
encontravam à mercê das intempéries do mercado e sem ancoragens
de proteção social. Nesse panorama, o que está em cena é fruto de uma
lógica paradoxal patenteada pelo modelo neoliberal de obtenção de ri-
queza: a exigência de conquistas diante da ausência de suportes social-
mente disponíveis para que esse processo se dê. Esse paradoxo ultra-
passa questões referentes à distribuição de renda, suas repercussões
econômico-sociais e incide, diretamente, na esfera subjetiva produzindo
sofrimentos psíquicos. Tais sofrimentos, deagados pelo desmentido
social, descortinam a situação de desamparo produzida pelo Estado.
1 O trabalho de escuta em questão foi
realizado no âmbito do projeto Escutando
o Galpão, realizado no Núcleo Comunitário
da Clínica Social do CPRJ, do qual participei
durante os anos de 2015, 2016, 2017,
2018 e 2019. Em 2015, o dispositivo Tá
na roda foi concebido em parceria com
Claudia Garcia, Fania Izhaki e Lucia Lenz
Cezar. Para maiores informações sobre
a origem do dispositivo, c.f. (Mano et al.,
2018). Atualmente o Tá na roda é utilizado
pelo grupo de psicanalistas que continuam
participando do projeto Escutando o
Galpão e, também, pela equipe de trabalho
que compõe o projeto de extensão que
será apresentado neste artigo. Cada um
vem desenvolvendo e dando contornos
especícos ao uso do dispositivo em
questão. Para acompanhar as variações c.f
(Izhaki; Mano; Andrade, 2023) e Klautau at
al., 2023).
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É possível dizer que, para Ferenczi (1933), o fator traumático (Freud,
1920) está diretamente relacionado à situação de desamparo, ou seja,
à falha do ambiente em se congurar como amparo, força auxiliar, ca-
paz de fornecer suporte e atuar como mediador de experiências que
reconheçam, assegurem e legitimem o lugar do sujeito em seu entorno.
Quando o Estado falha na função de fornecer redes de proteção, um
estado de falta de ajuda é instaurado, deixando à vista a ausência de
direitos básicos que garantem o lugar de cidadão, afetando, assim, a
sensação de pertencimento e a conança nas instituições. Sem um laço
que sustente o pertencimento, o sujeito dicilmente obtém meios de se
inscrever simbolicamente como membro de um grupo (Bordieu, 1997).
Como o reconhecimento por parte do grupo social consiste em uma for-
ma de estabelecimento do status de unidade do eu (Honneth, 2003),
essa ausência compromete o investimento narcísico, reduzindo o arse-
nal de referências identicatórias. Sem laços de pertencimento, os sujei-
tos podem ser lançados para fora da política. Somado a isso, a falta de
recursos necessários para uma vida digna fabrica estados de incerteza,
instabilidade e fragilidade invisibilizados pelo mito da meritocracia que
naturaliza as injustiças sociais. Viver em condições precárias, sobreviver
diante da incerteza de um futuro ou, até mesmo, ter sua privação como
perspectiva, maximiza a condição de desamparo, inerente a todo humano,
instaurando a insegurança, a desestabilização e a vulnerabilidade como
ingredientes da vida cotidiana.
A tarefa de construir dispositivos de escuta para jovens, muitas vezes,
impossibilitados de sonhar com um futuro prossional, precisa conside-
rar, inicialmente, o trabalho psíquico em torno de duas situações de desam-
paro: uma própria da condição adolescente e outra especíca da situação
de vulnerabilidade social (Klautau, Macedo, Siniscalchi, 2021). A chegada
sem aviso da puberdade traz consigo uma situação de desamparo que
convoca um trabalho de elaboração ou, como muitos dizem, que con-
voca o sujeito a adolescer: despir-se da identidade de criança, ou seja,
deixar cair a condição de “sua majestade, o bebê” (Freud, 1914). Nesse
sentido, é possível dizer que o púbere é despertado do sono da latência
e se vê possibilitado a realizar o que até então só era passível de acon-
tecer na dimensão da fantasia. Com isso, uma inquietante estranheza
é instaurada: o jovem não se reconhece mais a partir do olhar de seus
pais. Uma nova roupagem é imposta pelas mudanças corporais e altera-
ções hormonais que transformam a identidade infantil. Tais novidades
colocam o jovem diante do trabalho psíquico da adolescência, ou seja,
de construir um lugar, intra e intersubjetivo, capaz de abrigar o novo
corpo e todas as mudanças subjetivas e sociais atreladas a esta trans-
formação. Esse processo inclui despir-se, deixar cair, ceder, enm, abrir
mão de uma parte de si moldada a partir dos ideais do eu paternos.
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Adolescer em situação de vulnerabilidade social exige do sujeito um tra-
balho psíquico suplementar diante do desamparo estatal. Vale lembrar
que, de acordo com Butler (2017), a condição precária não pode ser enten-
dida como uma verdade existencial. Ela é fabricada, produzida. Como já foi
dito, estamos diante de uma juventude que sofre também com processo de
retirada das redes de proteção, no sentido de uma falta de garantias para
o básico – como estudo, saúde, moradia e possibilidades de ir e vir – que os
colocam à mercê, inseridos em um contexto cuja a marca fundamental é a
incerteza. Falta de certeza esta que está sempre à espreita. A perspectiva de
um futuro tão incerto, ou até mesmo a privação de um futuro, leva a pensar
em um incremento do desamparo característico da adolescência que ge-
ralmente vem acompanhado de angústias visíveis e, também, de angústias
invisíveis.
Com o intuito de ofertar um espaço de elaboração para esse momen-
to transitório, marcado pela busca de um futuro prossional, foi feita
a aposta de construir dispositivos coletivos de escuta para jovens em
um pré-vestibular comunitário. Ao penetrar nos espaços educacionais, o
método psicanalítico pode funcionar como uma ferramenta para a escu-
ta, para o reconhecimento e para a legitimação tanto de questões típicas
do período da adolescência quanto para dar voz ao desamparo social-
mente produzido e banalizado pelo discurso neoliberal e pela atuali-
zação de práticas coloniais. Tendo em vista a necessidade de operar na
direção contrária à naturalização de tais discursos, a aposta do projeto,
que será apresentado a seguir, é que a escuta psicanalítica pode ope-
rar no âmbito coletivo tanto como um instrumento de cuidado quanto
como um fazer político: a construção de uma associação livre coletivizada tem
o potencial de atingir a dimensão singular e provocar um efeito de subjetivação. Tal
movimento pode propiciar a produção de interações coletivas fomenta-
doras de pensamento crítico dotadas da possibilidade de resultar em
práticas sociais emancipadoras capazes de fazer frente ao silenciamen-
to provocado pela naturalização das injustiças sociais, criando, assim,
possibilidades para o deslocamento de posições cristalizadas no laço
social.
Tá na roda:
o funcionamento do dispositivo de escuta grupal
O projeto de extensão “Tá na roda: intervenções clínico-políticas em es-
paços educacionais” vem sendo desenvolvido, desde 2021, em conjunto
com a pesquisa-intervenção “Sofrimentos sociais: questões teóricas e
desaos clínicos”, no Instituto de Psicologia da UFRJ, em parceria com os
Departamentos de Educação da UFRJ, da UFF, da UNIRIO, com a Asso-
ciação dos Juízes para a Democracia (AJD) e com o Projeto de Ensino Cul-
tural e Educação Popular (PECEP). Ambos os projetos vêm sendo reali-
zados em duas turmas de um pré-vestibular comunitário, formadas por
um total de, aproximadamente, 70 jovens, majoritariamente moradores
de uma favela da zona sul da Cidade do Rio de Janeiro. Semanalmente,
estão sendo realizados dois grupos operativos gratuitos (Pichon-Rivière,
1980), com uma hora e vinte minutos de duração, dedicados à escuta e
à elaboração de questões que permeiam o processo de preparação para
a entrada na universidade.
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Para a realização do tá na roda, é importante trabalhar o enquadre do
grupo e fazer com que os participantes se reconheçam como partes de
um todo. Dessa forma, logo no primeiro encontro, após a apresentação
da equipe e do projeto de extensão, os jovens são convidados a partici-
par da pesquisa. Para serem informados sobre o tema central da pes-
quisa, o TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) é lido em
voz alta. Nesse momento, aproveitamos para deixar claro que a partici-
pação na pesquisa é voluntária, que é possível desistir de participar em
qualquer momento e que o anonimato dos participantes será mantido
em publicações. Aproveitamos essa oportunidade para começar a cons-
truir um enquadre para as rodas. Um dos primeiros aspectos explora-
dos é a importância do sigilo: o que é falado na roda, ca na roda. Com
essa pequena brincadeira, ressaltamos a necessidade de construirmos
um espaço de conança, para que todos possam sentir segurança em
falar o que vier à cabeça: sentimentos, medos, angústias, coisas que po-
dem parecer bobas, temas de interesse, assuntos polêmicos, etc. Com
isso, o intuito é deixar claro que a roda pode ser usada como um espaço
de troca, não havendo julgamento nem, tampouco, certo ou errado. Ou-
tros aspectos importantes para o enquadre – com o objetivo de facilitar
o trânsito dos mecanismos identicatórios e de instaurar um lugar para
a roda – são, respectivamente, o sentar em roda e a manutenção do
horário do encontro semanal.
Partindo da premissa de que grupos operativos são estruturados por
mecanismos de autorregulação e são colocados em funcionamento por
um coordenador munido da tarefa de fazer a palavra circular, o seguinte
convite é feito aos participantes: o que vocês querem colocar na roda hoje?
Esse pontapé inicial, convoca os jovens a coletivizarem algo de si. O ob-
jetivo principal desse convite é possibilitar a construção de um processo
de associação livre coletivizada capaz de permitir que cada participante
possa tomar a palavra e agir inspirado pelo discurso dos outros, reali-
zando um trânsito de identicações: projetando-se nos outros, os jovens
encontraram possibilidades tanto de se identicarem quanto de se dife-
renciarem. Dessa forma, os mecanismos de identicação e de projeção
funcionam como ferramentas de trabalho para instaurar a possibilidade
de os participantes escutarem e serem escutados: ao mesmo tempo em
que falam de si, falam do outro e, até mesmo, pelo outro.
Para a garantir o funcionamento do dispositivo, outras ferramentas pre-
cisam entrar em cena. Semanalmente, a equipe de trabalho atua reve-
zando duas funções que são efetuadas dentro e fora das rodas: a tarefa
de fazer a palavra circular e o registro de como o exercício de associação
livre se congurou – isto é, a escrita de um diário de campo que funcio-
na como uma memória dos encontros. Essas duas funções, divididas
pela equipe previamente a cada roda, são nomeadas, de acordo com a
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metodologia de trabalho proposta por Broide e Broide (2016), respecti-
vamente, como a de coordenadores e a de cronistas2. Os coordenado-
res dedicam atenção ao manejo e a tarefa de propiciar a circulação da
palavra, enquanto os cronistas se responsabilizam pela organização de
um diário de campo, composto pela narrativa de cada encontro, escrito
em forma de crônicas. Não sendo somente relatórios, as crônicas apre-
sentam a observação crítica e as percepções latentes de seus autores.
Durante o nosso primeiro ano de trabalho, foi possível notar que a troca
da equipe, composta por coordenadores e cronistas, pouco inuiu no
movimento de associação livre coletivizada e de circulação da palavra
entre os participantes do grupo. Em função de tal percepção, formu-
lamos a hipótese de que a transferência é majoritariamente marcada
pela relação desenvolvida com o dispositivo3. Diante disso, ao invés de
mantermos sempre a mesma composição do grupo de coordenadores
e cronistas, nossa equipe, composta por um total de doze membros,
passou a se organizar da seguinte forma: seis integrantes passaram a
se ocupar de uma turma e cada roda passou a contar com a presença
de três integrantes responsáveis pela mesma turma que, sob a forma
de rodízio se alternam e, assim, participam quinzenalmente dos encon-
tros com os pré-vestibulandos. Com o intuito de manter a continuidade
entre um encontro e outro, sempre um membro da equipe se repete
no rodízio da semana seguinte. Desta forma, a cada semana, a equipe
está congurada com diferentes participantes, não havendo, assim, dois
subgrupos xos compostos por três integrantes em cada turma.
2 Gostaria de agradecer a Aunna Marques,
Beatriz Adler, Bento Alde, Bianca Malta,
Catarina Barros, Eduardo Pacheco, Elen
Gonçalves, Guilherme Vargas, Hirne
Siqueira, Ysys Vieira, Joana Andrade, Julia
Mejias, Julia Stockler, Juliana Branco, Laísa
Santana, Luiza Mendes, Manuela Fuller,
Maria Coutinho, Marília Garcia, Patricia
Muzy, Paula Natal e Renata Mello pela
parceria na construção e na implementação
deste projeto. Todos são ou foram
integrantes do tá na roda e se dividiram
entre as funções de coordenadores
e cronistas, se responsabilizando,
semanalmente, pela confecção do diário de
campo e pela coordenação das rodas.
3 Beatriz Moraes Adler deu o pontapé inicial
para a construção dessa hipótese ao notar
que, mesmo com a troca de integrantes
das equipes, os alunos continuavam se
apropriando do dispositivo para construir
um espaço de convivência.
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O diário de campo funciona como uma
bússola para o trabalho a ser realiza-
do. Toda semana nos reunimos para
discutir as crônicas. Além de debater-
mos sobre os temas que foram colo-
cados na roda, as afetações da equipe
e os obstáculos encontrados na tarefa
de fazer a palavra circular, na maioria
das vezes, travamos uma discussão
em torno do que há de latente no
conteúdo manifesto produzido pelo
grupo a partir exercício de associação
livre coletivizada. O material latente,
ao se tornar manifesto, pode operar como uma espécie de ferramen-
ta clínica propícia para estabelecer uma continuidade entre as rodas e,
também, para destravar o movimento de resistência e retirar o grupo da
pré-tarefa, funcionando, assim, como propulsor do movimento de asso-
ciação livre coletivizada. Tornar manifesto o que estava latente, também
pode produzir um efeito de reconhecimento, de asseguramento de que
o conteúdo emergente da dimensão singular se propagou para o coleti-
vo e está saindo do silenciamento, ganhando voz e sendo colocado em
palavras. Esse movimento passou a fazer parte do nosso enquadre e a
ser chamado, pela nossa equipe, de amarrado4. Amarrar latente e ma-
nifesto, pode atuar, também, como um fator terapêutico, propiciando o
reconhecimento de conteúdos que estavam invisibilizados. Dessa ma-
neira, a escuta psicanalítica pode operar no âmbito coletivo tanto como
um instrumento de cuidado quanto como um fazer político.
O enquadre estabelecido para o funcionamento das rodas procura ins-
taurar a possibilidade de falar de si, de escutar o outro e de ser escuta-
do. Esta conguração, além de possibilitar o estabelecimento de uma via
de elaboração para angústias que permeiam o processo de preparação
para a entrada na universidade, propicia aos alunos se reconhecerem
como pertencentes a um coletivo. Este tipo de agrupamento tem, como
veremos a seguir, uma função essencial no dispositivo aqui apresenta-
do.
4 Durante as discussões das crônicas, Joana
Andrade foi patenteando o amarrado
como nomenclatura para o movimento de
construção de sentido descrito acima. Além
de produzir um efeito de reconhecimento
para os pré-vestibulandos, é importante
ressaltar que o amarrado também produz
um efeito na equipe de coordenadores e
cronistas: um reconhecimento do trabalho
que está sendo realizado. Este vai sendo
construído no momento em que o fazer
clínico vai sendo entrelaçado com conceitos
estudados.
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Um sobrevoo pelas rodas: a potência do coletivo
A expressão tá na roda tem a intenção de designar o exercício de rea-
lizar uma introspecção, uma espécie de breve mergulho em si mesmo
e a ação de colocar na superfície algo que poderá ser visto e escutado
pelos participantes do grupo. Em outros termos, indica o movimento de
retirar algo de si e colocar na roda, ou seja, coletivizar. Tal deslocamento
traça um caminho do eu ao nós. Esse trajeto, além de colocar em práti-
ca a associação livre coletivizada, orienta, também, o sentido do trabal-
ho de escuta: quando emerge do singular e se propaga para o coletivo,
uma intervenção clínica passa a possuir caráter político. Seguindo essa
direção, o tá na roda propõe um trabalho de escuta a ser efetuado no
coletivo e através do coletivo.
A partir da rota traçada, sobrevoaremos algumas rodas com o intuito de
apresentar e discutir a potência do coletivo diante do trabalho de escuta
realizado com jovens atravessados por situações de desamparo suscitadas
pela condão adolescente e pelo processo crescente de retirada das ga-
rantias e da manutenção de direitos do cidadão e deveres por parte do
Estado. Para começar, a interação de duas participantes merece desta-
que:
Reparo quando as arrumadas olham pra mim: quando viram a cara, comentam com
a outra e, às vezes, até dão risada, reparo o jeito que tô. Marco qual era a roupa, o
jeito do cabelo, o batom pra não errar mais.
Ao ser tocada por este testemunho, uma jovem se manifestou: “Eu não mudo minha
aparência nem tenho vergonha por causa do preconceito das mulheres ricas, senão
eu vou tá me auto-oprimindo. Já basta viver na sociedade que oprime a gente”.
A fala de uma provoca algum tipo de afetação que inspira um agir na
outra. Dito de outro modo, a fala da primeira jovem toca a segunda.
Quando esta manifesta para o grupo sua afetação, algum tipo de iden-
ticação entre os pares é provocado. Com isso, o que pertencia à esfera
singular é coletivizado e, consequente, passa a pertencer aos outros par-
ticipantes também. Deste modo, um conteúdo emergente da dimensão
singular se propagou para o coletivo: rompeu a esfera do silenciamento
individual, ganhou voz e foi colocado em palavras por uma outra parti-
cipante.
Uma das potencialidades desse movimento, efetuado no coletivo e atra-
vés do coletivo, é a de operar na direção contrária à naturalização de
preconceitos e de práticas coloniais, instituída pela lógica estabelecida
como dominante. Isto tem como consequência a produção de inte-
rações coletivas fomentadoras de pensamento crítico e, também, pro-
picia possibilidades de deslocamentos de posições cristalizadas no laço
social. Além disso, o testemunho da primeira jovem denuncia a presença de
um tipo de sofrimento cuja raiz extrapola o universo da idiossincrasia individual,
revelando como sofrimentos podem ser socialmente produzidos, inscrevendo mar-
cas oriundas da invalidação, da depreciação e da desqualicação – que
tatuam a negatividade como constitutiva da própria imagem, fazendo
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com que os sujeitos só alcancem reconhecimento simbólico a partir da
condição de inadequação.
Carreteiro (2003) defende a ideia de que sofrimentos de origem social
são incrustados nas subjetividades sem serem compartilhados coleti-
vamente. O uso do dispositivo grupal, tal como foi apresentado acima,
possibilitou a circulação da palavra e colocou em cena sofrimentos que
estavam, até então, silenciados. Com isso, foi possível legendar e dar
sentido a práticas coloniais atualizadas e naturalizadas pela lógica neo-
liberal que sustenta o discurso dominante. Neste momento torna-se
importante ressaltar que o discurso em questão, ao ser reproduzido,
vai inserindo preconceitos, injustiças e desigualdades dentro do plano
da vida como ela é (Klautau et al., 2023). Se a vida é assim, fazer o quê?
É importante notar que uma pergunta como essa não comporta em si,
necessariamente, ausência de sofrimento; pelo contrário: contém o si-
lenciamento de uma dor da qual não se dá queixa. O silenciamento dos
sofrimentos socialmente fabricados tem a negação da dor como defesa
psíquica para tolerar o intolerável (Dejours, 2000). Muitas vezes a ver-
gonha serve como suporte para essa negação, individualizando e amor-
daçando a dor na esfera singular, produzindo, de acordo com Dejours
(2000), uma espécie de normalidade sofrente.
Uma normalidade que se mantém normal sofrendo silenciosamente, ao
mesmo tempo em que ca restrita ca à esfera singular, denuncia tam-
bém os efeitos subjetivos da lógica paradoxal disseminada pelo discur-
so neoliberal: a exigência de conquistas diante da ausência de suportes
socialmente disponíveis para que esse processo se dê. De acordo com
Dejours (2000), o que sustenta essa lógica é a dissociação entre adversi-
dade e injustiça promovida pelo mito da meritocracia que atribui a ad-
versidade à causalidade do destino, não vendo responsabilidade nem
injustiça na origem da adversidade. A aderência a esse discurso produz
indiferença com o que provoca sofrimento e, consequentemente, o si-
lenciamento do próprio sofrimento. O corolário disso, é a naturalização
da lógica que veicula a adversidade à causalidade do destino, retiran-
do a injustiça da origem da adversidade. Para ilustrar o que acabou de
ser descrito, tornar-se oportuno fazer uso de um fragmento retirado de
umas das crônicas produzidas pela nossa equipe de trabalho:
Bia foi quem puxou o assunto, dizendo, descontraída, que ia contar a
história triste de Dudu. Começou, então, a narrar a rotina do colega, a
qual ia também acrescentando comentários trágicos e engraçados. A
roda, então, cou sabendo que Dudu acorda às 6h, trabalha até às 18h e
depois segue para o PECEP. Bia brincou que nem para almoçar ele deve-
ria ter tempo e Dudu concordou. Auanna disse, também, em tom diverti-
do que ‘se der pra almoçar, tá bom demais’, acrescentando que tem três
empregos e descrevendo-os. A turma bateu palmas para Auanna, todos
com rostos admirados e, ao mesmo tempo, risonhos.
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É importante notar que o compartilhamento de rotinas exaustivas, não
suscitou ponderações, nem questionamentos e tampouco revolta dian-
te das diculdades encontradas para enfrentar, diariamente, a sobrecar-
ga de tarefas impostas pela necessidade de conciliar trabalho e estudos.
O que chama atenção é que nenhum dos alunos denunciou o quan-
to é injusto manter uma rotina de exploração incessante. A atmosfera
descontraída, permeada por risadas e aplausos ilustra uma espécie de
regra velada, propagada pelo uso das redes sociais, de dar ênfase ao
positivo e descartar o que não é bom. Seguindo a lógica que sustenta
essa regra, exteriorizar a injustiça não se congura como uma possibi-
lidade, já que esta é sentida como fruto de ação própria, de modo que
o sujeito suporta a contrariedade e se resigna diante da sua suposta
inadequação, como se, por não ser sucientemente bom, merecesse o
sofrimento (Branco & Klautau, 2022). Diante desse cenário, como pode
ser observado a seguir, uma espécie de luta contra si-mesmo é travada:
Dudu retomou a palavra, querendo contar mais sobre sua história. Des-
creveu com bastantes detalhes que roubaram seu celular neste m de
semana, mas que conseguiu recuperar depois, que estava quebrado e
que agora está sem celular. Disse que agora quer comprar um note-
book, mas que seu cartão foi recusado na loja porque faltou apenas
15 reais no limite. Conta isso tudo mantendo o tom genuinamente des-
contraído e arrancando muitas risadas da turma. Em certo momento,
durante a narrativa de Dudu, um dos alunos disse: “Somos todos Dudu”,
muitos riram e concordaram, rearmando a frase.
O trecho acima ilustra como, ao mesmo tempo, uma situação de insu-
ciência pode ser naturalizada como impotência pessoal e, também,
como pode ser catalizadora de identicações, provocando um efeito de
reconhecimento. Armar e repetir, aos risos, “somos todos Dudu”, coloca
em ato a emergência de um sentimento de unidade, característico da
formação de um coletivo. Além disso, torna visível, tal como diz o ditado,
uma espécie de defesa usada pelos jovens para tolerar o intolerável: rir
para não chorar. Desse modo, os membros do coletivo encontram su-
porte entre si, colocando em ação o que foi descrito como normalidade
sofrente (Dejours (2000).
Vale ressaltar que o uso coletivo de defesas erigidas para fazer frente a
dor silenciada reproduzem a dissociação entre adversidade e injustiça.
É desse modo que as desigualdades e os preconceitos – fabricados para
sustentar a reprodução das injustiças sociais – vão sendo naturalizados:
resignados, os sujeitos não se queixam, não compartilham seus sofri-
mentos e, logo, não se mobilizam coletivamente.
A narrativa de uma jovem, diante do testemunho de alguns colegas a
respeito de diferentes tipos de racismos sofridos, nos permite notar
como preconceitos, fabricados para sustentar a reprodução das injus-
tiças sociais, vão sendo naturalizados. Mesmo após escutar seus cole-
gas, Marília acreditava não ter sofrido racismo na escola:
INTERCAMBIO PSICOANALÍTICO, 15 (1), 2024, pp 72 - 84
ISSN 2815-6994 (en linea) DOI: doi.org/10.60139/InterPsic/15.1.6
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Joana conta que gostava de sua aparência, mas após ser chamada de bei-
çuda na escola, passou a se incomodar com seus lábios, tendo vontade de
arrancar e jogar fora. Marília diz não se lembrar de ter sofrido racismo na
escola, pois ninguém nunca a chamou de macaca ou algo do tipo. Conta de
uma vez que a chamaram de rato preto e ela deu um soco no menino.
Com o passar da roda, é possível observar Marília se apropriando do
testemunho de seus colegas:
Maria compartilha seu processo de transição capilar e revela como apren-
deu com sua mãe a considerar seu cabelo ruim, alisando desde os 9 anos.
Diz que o alisamento chegava a ferir seu couro cabeludo e, posteriormen-
te, entendeu que estava tentando fazer parte de algo que não lhe perten-
cia. Ainda assim, teve diculdade de bancar sua transição em casa, pois os
ideais de beleza da mãe continuavam sendo o cabelo liso. Renata comenta
sobre a capacidade de alguns comentários marcarem a forma como eles se
percebem. Conta que tinha um cabelo cacheado até que ouviu um menino
dizer que ela era até bonitinha, mas o cabelo era horrível. Desde então ela
alisa o cabelo.Depois de escutar mais alguns relatos sobre transição capilar
e a incidência do racismo na pressão estética, Marília se lembra de alguns
episódios, dentre eles a vez em que colocaram vários lápis em seu cabelo
sem que ela percebesse.
Esse trecho deixa claro a potência do coletivo: ao se identicar com
seus colegas, foi possível desnaturalizar e nomear como racismo algu-
mas brincadeiras infantis. Tal movimento nos permite entender como o
exercício de associação livre coletivizada tem o potencial de atingir a dimensão
singular e provocar um efeito de subjetivação: ao ser afetada pelo testemunho
dos outros participantes, a jovem pôde reconhecer o racismo, travestido
de brincadeira, exercido pelos seus colegas de escola. A partir de então,
começou a querer escutar mais o que seus pares tinham a dizer sobre
esse tema. Perto do nal da roda “Marília disse que também queria ouvir
de dois meninos pretos como esse processo tinha sido para eles e elogia o
cabelo de ambos”.
Após realizarmos um sobrevoo pelas rodas, podemos armar que o in-
tercambio entre identicações e projeções, engendram um trabalho co-
letivo de elaboração de sofrimentos socialmente produzidos: quando os
mecanismos de defesa cristalizados vão sendo desnaturalizados, sofri-
mentos que se encontravam silenciados e mantidos na esfera individual,
sem ser compartilhados, podem sair da invisibilidade, serem reconheci-
dos e, portanto, nomeados. Tal movimento, desencadeado no coletivo e
através do coletivo, possibilita tanto o deslocamento de posições xadas
no laço social quanto a produção de interações coletivas criadoras de
pensamento crítico. É desta forma que a circulação da palavra, dotada de efeitos
clínicos passa a possuir, também, efeitos políticos (Rosa, 2013).
INTERCAMBIO PSICOANALÍTICO, 15 (1), 2024, pp 72 - 84
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