INTERCAMBIO PSICOANALÍTICO, 15 (2), 2024, pp 109 - 123
ISSN 2815-6994 (en linea) DOI: doi.org/10.60139/InterPsic/15.2.9
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ANDRÉ GREEN E O CASO GABRIEL
EM A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL
ANDRÉ GREEN Y EL CASO GABRIEL
EN LA POSICIÓN FÓBICA CENTRAL
ANDRE GREEN AND GABRIEL
IN THE CENTRAL PHOBIC POSITION
Gisele Senne de Moraes
Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae
ORCID: 0000-0002-6578-4200
gimoraes@uol.com.br
Data de Recebimento:04-10-2024
Data de Aceitação: 30-10-2024
Para citar este artículo / Para citar este artigo / To reference this article
Senne de Moraes G. (2024) ANDRÉ GREEN
E O CASO GABRIEL EM A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL
Intercambio Psicoanalítico 15 (2), DOI: doi.org/10.60139/InterPsic/15.2.9
Creative Commons Reconocimiento 4.0 Internacional (CC By 4.0)
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Resumo: No artigo A posição fóbica central: com um modelo de associação
livre (2010a), Green nos apresenta o caso Gabriel, cujo funcionamento fó-
bico nas sessões se mostrava por fala imprecisa, em que o psicanalista
frequentemente sentia que perdia o o do que era comunicado. Gabriel
suscitava em Green experiências de vazio, recorrendo a frases como “não
sei” ou “não me lembro”, o que dicultava a capacidade de pensar do ana-
lista e do próprio paciente. Para o autor, o funcionamento fóbico de alguns
pacientes nas sessões resulta do risco ao Eu diante da proposta do método
psicanalítico; a interconexão de cadeias associativas traumáticas distintas
teria potencial para se tornar o trauma maior. Por meio do caso, busca-
mos apresentar o modelo de aparelho psíquico com o qual o psicanalista
francês trabalhava e alguns de seus principais conceitos, como trabalho do
negativo e estrutura enquadrante.
Palavras-chave: associação livre, trabalho do negativo, estrutura enqua-
drante, borderline.
Resumen: En el artículo La posición fóbica central: con un modelo de aso-
ciación libre (2010e), Green nos presenta el caso de Gabriel, cuyo funciona-
miento fóbico en las sesiones se mostraba por un discurso impreciso, en
el que el psicoanalista muchas veces sentía que perdía el hilo de lo que se
estaba comunicando. Gabriel evocó en Green experiencias de vacío, utili-
zando frases como “no sé” o “no recuerdo”, que dicultaban la capacidad
de pensar del analista y del paciente. Para el autor, el funcionamiento fóbi-
co de algunos pacientes en las sesiones resulta del riesgo para el Yo ante la
propuesta del método psicoanalítico; la interconexión de distintas cadenas
asociativas traumáticas tendría el potencial de convertirse en el trauma
mayor. A través del caso buscamos presentar el modelo del aparato psíqui-
co con el que trabajó el psicoanalista francés y algunos de sus principales
conceptos, como el trabajo de lo negativo y la estructura encuadradora.
Palabras-claves: asociación libre, trabajo de lo negativo, estructura de en-
cuadre, borderline.
Abstract: In the article The central phobic position: with a free association
model (2010a), Green presents us with the case of Gabriel, whose phobic
functioning in the sessions was shown in imprecise speech, in which the
psychoanalyst often felt that lost the thread of what was being commu-
nicated. Gabriel evoked experiences of emptiness in Green, using phrases
such as “I don’t know” or “I don’t remember”, which hindered the analyst’s
and the patient’s ability to think. For the author, the phobic functioning
of some patients in the sessions results from the risk to the Ego due to
the proposal of the psychoanalytic method; the interconnection of distinct
traumatic associative chains would have the potential to become the ma-
jor trauma. Through the case, we seek to present the model of the psychic
apparatus with which the French psychoanalyst worked and some of his
main concepts, such as the work of the negative and framing structure.
Key-words: free association, work of the negative, framing structure, bor-
derline.
ANDRÉ GREEN
E O CASO GABRIEL
EM A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL
Gisele Senne de
Moraes1
1 Gisele Senne de Moraes
é psicanalista, membro do
Departamento de Psicanálise do
Instituto Sedes Sapientiae, mestre e
doutora em psicologia pelo Instituto
de Psicologia da USP, onde estudou a
obra de Silvia Bleichmar.
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Introdução
O presente artigo1 deriva do curso Dimensões do inconsciente psicana-
lítico: revisitando casos clássicos2, que teve como propósito mostrar a
articulação entre clínica e teoria de importantes psicanalistas, para ex-
plicitar a coerência entre o fazer psicanalítico e a teoria construída pelo
autor. A inclusão de André Green no curso visou contemplar a signica-
tiva contribuição que autores contemporâneos trouxeram à psicanálise;
Green foi um dos escolhidos por sua relevância ao campo psicanalítico
a partir da década de 1960 até o m de sua vida. O psicanalista viveu
entre 1927 e 2012, tendo escrito extensa obra, sobretudo no campo
das fronteiras e é leitura fundamental para compreensão de casos-li-
mite ou borderline. O caso escolhido no curso foi Gabriel, apresentado
por Green no texto A posição fóbica central3, material que representa
o pensamento maduro do psicanalista. No artigo, Green defende a cen-
tralidade do aspecto fóbico no funcionamento de alguns pacientes nas
sessões, motivo pelo qual nomeia como posição fóbica central, trazendo
observações extraídas da longa análise de Gabriel, o caso clínico que o
ajudou a compreender tal modo de funcionamento. O autor apresenta
também seu pensamento clínico sobre o caso e formulações sobre o
processo associativo esperado, tecidas a partir do modelo desenvolvido
por Freud em O projeto para uma pesquisa cientíca (1895).
O caso Gabriel
As sessões com Gabriel eram marcadas por “angústias permanentes”,
com fala confusa e particularmente imprecisa quanto a acontecimentos
e datas, que ora apareciam relatados em a uma idade, ora em outra. Era
um discurso repleto de generalidades que funcionavam como névoa ao
pensamento de Green. Quando surgiam temas interessantes e Green
conseguia seguir o pensamento de seu paciente, Gabriel dizia que o psi-
canalista teria se cansado dele e que o mandaria embora. O paciente
frequentemente recorria a frases como “não sei”, “não me lembro”, “não
é apaixonante isso que estou dizendo”, frases que eram uma espécie de
“fórmula” que aniquilava a capacidade de pensar de Green.
Levou anos para o psicanalista compreender que Gabriel havia mora-
do com uma “ama-de-leite” (Green, 2010a, p.71) com idade entre 1 e
3 anos. Ao ser perguntado, o paciente não sabia dizer por qual motivo
isso ocorrera. Gabriel foi separado da mãe e apenas o pai o visitava. Ele
esperava silenciosamente pela mãe, sem demonstrar, por medo do pai
também desaparecer. Quando ela foi buscá-lo, ele não a reconheceu.
Gabriel nalmente conseguiu relacionar o acontecimento com o fato de
sua mãe não ter percebido um abcesso no seio que impedia a amamen-
tação: de seu seio saía apenas pus, mas ela não sentia dor e não viu o
desespero do lho que emagrecia e possivelmente estava desidratado.
1 Agradeço a Nelson Coelho Junior pela
atenta leitura e pelas contribuições ao texto.
2 Curso de curta duração, em parceria com
Douglas Rodrigo Pereira, Jonas de Oliveira
Boni, Ricardo Cavalcante e Thiago Abrantes,
que contou com aula introdutória de
Nelson Coelho Jr., oferecido pelo Instituto
Nebulosa Marginal em 2021.
3 O artigo em que Green relata o caso
Gabriel, La position phobique central:
avec un modèle de l’association libre,
foi publicado na Revue Française de
Psychanalyse em julho de 2000 e traduzido
para o português pela Revista de Psicanálise
da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre
em 2010 com o título A posição fóbica
central: com um modelo da associação livre
(A posição fóbica central). Está publicado
também no livro La pensée clinique (2002),
que foi traduzido pela Amorrortu para o
espanhol como El pensamiento clínico
(2014).
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Os pais se separaram quando Gabriel tinha 12 anos e ele morou com
a mãe ”deprimida e inacessível” até os 15 anos, quando ela mudou de
casa e o deixou. O pai havia casado novamente e o convidou para ir
morar com ele em outra região, mas Gabriel vivia em conito com a
madrasta e decidiu não ir, cando completamente solitário. Teve uma
adolescência conturbada e, após ser reprovado no exame nal do ensi-
no médio, morou fora da França por um período; nova fase de completo
isolamento, solidão e tristeza.
Por anos a mãe preferiu não ver Gabriel, não o procurava, evitava visi-
tas do lho e chegava a desligar a linha telefônica. Quando atendia ao
telefone, reclamava de tudo, armando que Gabriel podia ajudá-la,
mas nada do que ele dizia era escutado. Green nalmente entendeu
que a mãe de seu paciente não suportava separações, temia adoecer
ao se separar após uma visita ou uma conversa. A solução para evitar
sofrimento era não encontrar o lho.
Gabriel certa vez trouxe a memória de se ver esperando pela mãe de-
pois de ter sido separado dela: “Não é possível, isso não pode ser eu”
(p.72). Para Green, esta seria uma criação terapêutica carregada de ver-
dade, não uma fantasia. Havia aí um não reconhecimento da imagem de
si no “isso não pode ser eu”, uma imagem de si percebida e representa-
da, mas negada ao mesmo tempo.
Gabriel possuía tormentos permanentes, mas para Green ele não as
possuía pois “o que o angustiava encontrava explicação no comporta-
mento dos outros em relação a ele” (p.72). Era um movimento defensi-
vo em que as fronteiras eu-outro cavam confusas. Para Green, não se
tratava tanto de relação eu-outro, mas de não diferenciação bem esta-
belecida. Confusões facilitadas em sua adolescência em momentos com
sua mãe, por exemplo quando ela o apresentou como irmão ou talvez
como marido, com diferentes nomes, momentos em que o colocava
em situação de “suspensões transitórias de sua identidade” (p.73). Não
eram identicações, ao contrário, impediam identicações. Movimentos
sugestivos de relações duais ou de não separabilidade, mas Green com-
preendeu, ao mesmo tempo, que havia elementos indicando a presença
do terceiro, como na fantasia de que seria o pai o responsável pela pri-
vação materna, porque queria a mãe só para si. Por isso teria afastado
Gabriel, privando-o da relação com a mãe na amamentação; a relação
com o seio materno, com a mãe na amamentação, ainda que mortífera,
era possessão de Gabriel.
Green foi entendendo melhor seu paciente e alguns de seus compor-
tamentos. Certa ocasião, ao mencionar sua espera pela mãe quando
esteve separado dela, Gabriel voltou ao abcesso no seio materno com
um relato dela sobre sua amamentação: “e você sugava, sugava e suga-
va, o que fez Green pensar que nada saía, tal como nas sessões, supomos
no texto. Quando Gabriel se aproximava de campos associativos perigosos,
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passíveis de conexões, parecia esvanecer, fato que se repetia em sua vida,
em diferentes relações pessoais ou prossionais. Green compreendeu que
seu paciente não apenas não conseguia se aproximar de experiências de
vazio, mas provocava no outro tais experiências, o que ocorria na análise
por meio da imprecisão e confusão em seus relatos.
A fala vaga, imprecisa e confusa de Gabriel, que ora reconhecia interpre-
tações para desconsiderá-las em seguida, para Green, ocorria porque cada
novo avanço seguia para uma direção ameaçadora; todas as direções eram
ameaçadoras, era melhor paralisar. Assim, todas as cadeias associativas le-
vavam a traumas, fugir de uma era caminhar em direção a outra também
traumática. Assim:
Comprendi [...] que o que impedia seu desdobramento associativo, o que
[...] fazia estagnar essa progressão pluridimensional e esterilizava seu curso
era a antecipação do ponto aonde isto podia conduzi-lo. No m, era como se
todas devessem levar à cascata de traumas, respondendo uns aos outros.
(Green, 2010a, p.74)
Modelo de associação livre
Para avançar sobre a posição fóbica central, Green expôs o que seria uma
sessão produtiva. A inspiração foi o modelo gráco proposto por Freud em
O projeto para uma psicologia cientíca (1895), no capítulo “Introdução ao
Ego”.
Assim, em uma sessão produtiva, quando há associação livre, o paciente fala
frases que não se sucedem em uma conexão lógica, de maneira dispersa,
onde cada ideia semanticamente consistente é rodeada por comentários
circunstanciais. O modelo neuronal de Freud de O projeto, pensado como
metáfora para a associação livre, leva-nos a considerar que as alterações
de percursos buscam “impedir o estabelecimento de ligações muito dire-
tas com o inconsciente” (p.63), no entanto, os comentários circunstanciais
são como os investimentos colaterais. O discurso despista a lógica para o
ouvinte comum; ao psicanalista fornece conexões que permitem acesso ao
recalcado. Deste aspecto deriva a proposta de Green de que
os “diferentes investimentos laterais deviam ser colocados em
relação com a via obstruída que não pode ser trilhada, o que
conduz diretamente de a a b” (p.63). Assim, a associação livre
enriquece as possibilidades poéticas da fala, por promover o
relaxamento da censura, e propicia:
uma atividade que intensica modos de radiação à distância
entre partes do discurso, como buscam deliberadamente a
poesia e a escrita artística, mas de forma controlada. O que
nos indica que essa radiação, ao suscitar efeitos à distância,
parece ser uma capacidade do espírito humano que entra em
jogo quando aquilo que visa o discurso não pode ser enun-
ciado sem implicar um risco para quem se exprime, ou que
um discurso indireto é mais rico quando adota as formas da
poética. (Green, 2010a, p.64)
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Como o original freudiano, Green aproxima o funcionamento associati-
vo a um modelo arborescente4. No entanto, a ênfase está no aspecto re-
ticular passível de ressonâncias múltiplas, com núcleos de reverberação
retroativa e anunciação antecipatória que se conectam entre si. Há re-
verberação retroativa na medida que uma fala adquire sentido a partir
de ecos retroativos nas falas emitidas antes na sessão, o que evidencia-
ria “a persistência de seu poder signicativo muito tempo depois que o
discurso que as veiculava se extinguiu” (p.65). E há anunciação antecipa-
tória na medida que alguns termos funcionam como advertências, mas
que somente são percebidos por seu caráter antecipatório pelo analista
a posteriori, uma vez que o valor de tal antecipação se encontrava isola-
da, não permitindo ao analista perceber o que anunciava.
Dito de outra forma, o modelo proposto por Green para explicar uma
sessão produtiva (quando há associação livre) prevê a fala do pacien-
te na sessão como um circuito em uma estrutura temporal complexa.
A exposição de Green sugere que a psicanálise propõe um paradigma
associativo diferente da linearidade presente em teorizações linguísti-
cas. A fala associativa, carregada de quanta de afeto, possui efeitos de
irradiação, com ressonâncias que operam interconectadas em rede, seja
pelo caráter antecipatório de certos enunciados, seja pela reverberação
retroativa operante em sessões. Copio um trecho que sumariza esta
compreensão:
Como se vê, um tal funcionamento lembra muito mais a gura de rede
do que a da linearidade, às vezes ramicada na coexistência de diferen-
tes temporalidades, lineares e reticulares. Além disso, entre as rami-
cações que entram na guração do processo, algumas partes podem
permanecer mudas, pois são submetidas a um contrainvestimento mui-
to forte; elas não são menos ativas no inconsciente, podendo às vezes
ser reanimadas ou, em outros casos, passar a excitar outras sem se ex-
pressarem explicitamente. Outras parecerão ausentes, e o sentido ja-
mais se desenvolverá a partir delas, mas insinuarão na mente do analis-
ta a ideia de sua necessidade para chegar a uma compreensão mínima
e, no entanto, sempre hipotética. Se há efetivamente arborescência do
sentido, é na medida em que se pode passar de um ramo da árvore a
outro por um trajeto recorrente para chegar em seguida às bifurcações
posteriores do ramo de onde se partiu. (Green, 2010a, p.66)
Interessante notar o uso que o autor fez de expressões que remetem
ao universo do movimento, de ondas e da energia, tais como efeito
de irradiação, ressonância, vibração interna, propagação associativa...
4 Na página 65 (2010), o autor apresenta a
seguinte gura:
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A rede formada com o discurso associativo é uma rede por onde circu-
la o aspecto energético. O modelo sugere que afetos possuem o papel
mais relevante nas difrações ou desvios. Assim, Green defende que o
discurso associativo tem como marca efeitos de irradiação, implicando
que seus pontos nodais, onde ocorrem difrações, são portadores de
efeitos dinâmicos articuláveis a outros momentos do discurso da sessão
ou de outras sessões. Como dissemos, o modelo de associação livre foi
o ponto de partida para Green se aproximar do funcionamento mental
na posição fóbica central. Nela, o paciente ao desviar de um elemento
nodal do discurso, pode chegar a outro ponto desencadeador de afeto e
isso provocar outro desvio, nova difração, e assim por diante.
Gabriel e o risco de curto-circuito
Destaquei anteriormente que o discurso associativo seria arborescente,
seus elementos, ao irradiarem, ressoam uns nos outros, formando uma
espécie de rede interconectada. Assim, cada bloco de elementos dis-
cursivos – que Green denominou de semantemas – forma um circuito
próprio; os circuitos se integram formando circuitos maiores, por vezes
em momentos bastante distintos na sessão. Em Gabriel, os circuitos
eram constituídos por diferentes traumas com vias de circulação impe-
didas. Ao desviar de uma via associativa ameaçadora, Gabriel acessava
outra igualmente perigosa, cuja circulação também se encontrava impe-
dida. Para fugir de uma armadilha ele avançava diretamente para outra
tão ou mais perigosa. O psiquismo de Gabriel era um campo minado,
não havia por onde circular. Desta forma, o maior problema em suas
sessões era que acessar um determinado campo semântico traumático
teria o potencial de conectar diversos campos semânticos traumáticos,
sendo a possibilidade de tudo se conectar o maior perigo de todos. A
única solução era esvanecer, confundir, apagar-se na produção contra-
transferencial, que tinha como efeito impedir a capacidade de pensar
do psicanalista.
A proposta de Green, ao escrever seu texto, era mostrar o funciona-
mento psíquico fóbico nas sessões. À diferença de pacientes que fazem
relatos sobre suas fobias, cujas análises produzem associações e novas
possibilidades, na posição fóbica central - mesmo quando há relatos de
fobias o sintoma fóbico é insuciente para “circunscrever o conito
ou, pelo menos, seus aspectos mais investidos” (p.58), de tal forma que
a análise da fobia patina em falso, chegando a conclusões imprecisas e
indeterminadas.
O aspecto fóbico se localiza na evitação da regra fundamental da psi-
canálise, a associação livre, com a evitação da inteligibilidade da falae,
consequentemente, da capacidade de pensar do analista, portanto, do
próprio processo analítico. Para Green, haveria falência da defesa neu-
rótica. O espraiamento da evitação fóbica produz extensa inibição do
Eu e leva a um isolamento cada vez maior do paciente. Os pacientes
sentem que fogem, mas não sabem do que fogem. Os pacientes, na ver-
dade, fogem de si mesmos. Não apenas de algum aspecto transgressivo
que possam possuir.
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Desta forma, o funcionamento fóbico de Gabriel era uma atitude de evi-
tamento que resultava no prejuízo do próprio pensar, da capacidade
de pensar do paciente e do analista. A posição fóbica central seria uma
“disposição psíquica de base que se encontra geralmente no tratamento
de certos estados limites” (p.60). O central teria relação com o caráter
fundamental da disposição ao evitamento. O central, assim, tem relação
com as ressonâncias entre temas ameaçadores não apenas em função
de sanções do Supereu, mas também ameaçadores à própria organi-
zação do Eu, temas que se potencializam uns aos outros pela ampli-
cação que produzem entre si, sendo fundamental evitar conexões. São
situações em que não há um único evento traumático (mesmo que este
tenha sido intenso), existem diversos eventos traumáticos. Constelações
traumáticas que, se conectadas – e vimos que a proposta da associação
livre é a da conexão de distintas situações semânticas –, seriam catastró-
cas com potencialidade para desmantelar o Eu:
O verdadeiro trauma consistirá então na possibilidade de vê-los reuni-
dos em uma conguração de conjunto onde o sujeito perde sua capaci-
dade interior de se opor às proibições e não tem mais como assegurar
os limites de sua individualidade, recorrendo a identicações múltiplas
e às vezes contraditórias, e sendo incapaz agora de pôr em prática so-
luções defensivas isoladas. É por isso que a ideia de centralidade me
pareceu a mais apropriada para denir uma situação entre duas águas,
nível intuitivamente percebido pelo analista como sendo aquele em que
progride a corrente associativa, enfrentando aquilo que cria obstáculo à
sua progressão, às suas ramicações, ao desdobramento no sentido da
superfície, assim como em direção à profundidade. (Green, 2010a, p.61)
O posicionamento de evitação de Gabriel, que ia no sentido de se esqui-
var da associação livre, seria manifestação do negativo. Nesse momen-
to, faz-se apropriado abordar o conceito trabalho do negativo desenvol-
vido pelo autor, fundamental também para compreendermos o modelo
de aparelho psíquico e algumas construções teóricas de Green.
O trabalho do negativo, o duplo limite do aparelho psíquico e o narcisis-
mo primário
O conceito trabalho do negativo foi desenvolvido por Green em alguns
artigos ao longo dos anos, com aproximações mais ou menos distintas
a cada novo material e é tema de um livro do autor. Buscarei “sintetizar”
a ideia decompondo seus termos: trabalho e negativo. O termo trabal-
ho foi emprestado do uso que Freud fez da palavra, como processo de
transformação no aparelho psíquico (Green, 2008b, p.260). Assim, tal
como o trabalho dos sonhos ou o trabalho do luto, a negação também
envolve um trabalho psíquico, uma exigência ao psiquismo, por exem-
plo, como construção de um não à descarga direta pulsional.
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Já com relação ao termo negativo, a inspiração maior de Green parece
ter sido A negação (1925), texto sobre o qual chegou a armar: “O ar-
tigo de Freud sobre a “Negação” é de longe, no que me diz respeito, o
artigo que mais me faz reetir, em minha prática analítica e em minha
elaboração teórica” (Green, 1990b, p.79). No material, Freud arma que
a negação na linguagem – “não, não é isso” – seria um substituto inte-
lectual do recalque, de tal forma que o não mais distante seria um sim,
disfarçado em função do recalque. Para tal, Freud sustenta que há dois
tipos de julgamentos no psiquismo: de atribuição e de existência. O pri-
meiro, o julgamento de atribuição, decide se o objeto é bom ou mau e,
assim, se deve ser incorporado ou excorporado. Ele é o julgamento mais
próximo da linguagem pulsional e é anterior ao outro. O julgamento de
existência, por sua vez, estabelece diferenciação entre objeto interno e
externo, se o objeto existe ou não. Ou, como Green resgata de Sára e Ce-
sar Botella, se é “Somente dentro – Também fora” (Green, 2008b, p.265).
Green destacou nas Conferências Brasileiras o fato de Freud ter arma-
do que o julgamento de atribuição (se o objeto é bom ou mau) antecede
o julgamento de existência (se o objeto existe ou não) e vai além ao re-
etir sobre sua incidência:
o que quer dizer que uma coisa é considerada boa ou má antes que
tenhamos decidido se ela existe ou não, o que contraria qualquer lógica,
porque mesmo que não exista na realidade ela pode existir na nossa
mente -, ele tem uma frase que me levou a abismos de reexão... Freud
diz que se procurarmos a fonte dessa função da negação e da armação
vamos encontrá-la na linguagem das mais antigas moções pulsionais –
as pulsões orais. [...] então a negação deixa de ser uma função do ego. O
trabalho do negativo não é mais uma atividade defensiva que só estaria
ligada ao ego [...]. (Green, 1990b, pp.79-80)
A partir dessas duas aproximações, é possível armar que trabalho do
negativo se trata do conjunto de operações que possuem como carac-
terística alguma forma de negação no interior das instâncias psíquicas e
entre elas. O que inclui as defesas primárias e aquelas cujo protótipo são
o recalque (Verdrängung), como a recusa5 (Verleugnung) e a forclusão6
(Verwerfung), até a denegação ou negação (Verneinung) na linguagem.
O trabalho do negativo, assim, opera da pulsão à linguagem: “língua do
Eu – aquela que fala – [e] na língua do id – aquela que engole ou cospe”
(Green, 2010b, p.291). Quanto mais próximo o trabalho do negativo está
do representante psíquico da pulsão, mais próximo estará do mortífero;
quanto mais próximo do recalque, maior será sua proximidade com a
pulsão de vida (Green, 1990b, pp.81).
5 Recusa (-da realidade), segundo tradução
de Laplanche e Pontalis (2001). Na tradução
para o português do texto de Green,
encontramos os termos clivagem ou
rejeição (Green, 2008b, p.263)
6 Lacan traduziu Verwerfung como
forclusão, “mecanismo de rejeição fora da
cadeia simbólica” (Green, 2008b, p.261).
Green menciona que a palavra alemã teria
sido traduzida também como rejeição
(p.261). repudio (p. 261).
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Green fala em excorporação, me-
canismo prévio à identicação pro-
jetiva (Green, 2010b, p.292), como
o não do id (eu cuspo, eu vomito).
Trata-se de uma ação que visa colo-
car para fora o mau, para expulsá-lo
para o mais longe possível, o que
se relaciona com o estabelecimento
dos limites dentro-fora, permitindo
“a criação de um espaço interno no
qual o Eu como organização pode
nascer para a instauração de uma or-
dem fundada no estabelecimento de
ligações relacionadas a experiências
de satisfação” (p.292). Assim, a ideia
de estabelecimento de dentro-fora
remete à instauração do Eu como or-
ganização e, por conseguinte, do objeto como algo separado.
A expulsão do mau (Green, 2010d p.303) protege o Eu, desde que o ou-
tro se ocupe em descarregar o excessivo da criança, desde que o excor-
porado e projetado no objeto seja transformado e restituído à criança.
Trata-se de uma questão de espaço e de tempo, diz Green fazendo re-
ferência a construções bionianas e winnicottianas. O trabalho do nega-
tivo, portanto, está na pulsão excorporada e projetada no outro, mas
é um não que se estende ao próprio objeto, à negação mesma de sua
existência, para que o Eu possa ser instaurado: “É essencial para a cons-
trução do Eu do bebê que lhe permita dizer sim a si mesmo, que a mãe
aceite que ele possa lhe dizer não. Não somente sob a forma de ‘Você
é má’, mas às vezes, também, ‘Você não existe’” (Green, 2010b, p.292).
Como vemos, o trabalho do negativo está presente nas defesas psíqui-
cas que constituem os limites do psiquismo, estabelecendo um duplo
limite ao operar em suas bordas, no somático e no real. Ele funciona
expulsando os excessos, para poder fazer as ligações internas. Para tal,
faz-se necessário que os objetos externos tenham a função de capturar
os excessos que são expulsos do psiquismo, que consigam digeri-los,
para que estes possam ser re-introjetados. O ambiente externo possui
papel primordial para o estabelecimento do dentro e do fora, papel de
continente, nos moldes de Bion. Dois limites, duas fronteiras, as frontei-
ras corpo/psiquismo e psiquismo/real. No meio, na área intermediária
entre o somático e o real, o psiquismo se constitui.
Green apresenta um modelo gráco de sua proposta de aparelho psí-
quico, seguindo uma sequência que vai do somático ao objeto externo,
mesma direção que vemos no modelo freudiano da interpretação dos
sonhos, do inconsciente à percepção. Apresento a seguir o modelo apre-
sentado por Green, explicitando o modelo freudiano de A interpretação-
dos sonhos (1900)7 em seu interior, no qual visualizamos com clareza a
proposta de duplo limite do aparelho psíquico:
7 O modelo desenhado se apoia nas
imagens dos textos 2ª Conferência: “teoria
das representações (coisas e palavras)
” (1990a) e A análise do material e seus
componentes (2008a), acrescidas por
contribuições de Fernando Urribarri
apresentadas em grupo de estudos sobre
André Green (18/8/2017).
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Como podemos observar na imagem, o campo do psíquico é essen-
cialmente domínio das representações8; a própria representação é um
negativo, no sentido de não positividade da presença do objeto. Candi
(2010) aponta que o negativo é também o que não está na positividade
do psiquismo como representável, é o irrepresentável (ou o irrepresen-
tado), o traumático e excessivo. Esta autora sugere ainda que o negativo
na obra de Green ora se aproxima do recalque ou do branco (psicose
branca), ora se inclina para as ideias de vazio e de irrepresentável.
O trabalho do negativo constitui o psiquismo, mas também o ameaça,
na medida que o excesso e a destrutividade não sejam transformados
pelo outro e restituídos ao sujeito, à criança. O aspecto destrutivo ganha
protagonismo em função de ausência ou presença excessiva de obje-
tos primários bons internalizados que produzam uma estrutura enqua-
drante no narcisismo primário. Quando a ameaça sobressai, há o nega-
tivo do negativo.
A sequência a seguir permite nos aproximarmos das ideias de estrutura
enquadrante e narcisismo primário em Green:
É apenas quando a resposta do objeto se produz em um prazo su-
ciente e tolerável, e sob uma forma assimilável (capacidade de rêverie
da mãe, Bion), que o Eu da criança pode se dizer: “isso não é isso, mas
isso pode funcionar”. E é desse ponto que pode partir o recalque. O re-
calque se efetua, portanto, sob o modelo das aceitações e das recusas
do objeto. Compreendemos melhor a comparação antropomórca de
Freud mencionada no início destas reexões [em O recalque (1915)]. O
pequeno homem que está no homem é, de fato, uma pequena mãe. O
que é agradável ou desagradável para o Eu se fundamenta naquilo que
é agradado ou não agradado pelo objeto. A relação com o objeto foi
internalizada, o sim e o não foram introjetados. O recalque originário
estabelece o limite entre o Cs-Pcs, de um lado, e o Ics, de outro. (Green,
2010b, p.293)
A mãe (ou quem quer que exerça essa função) será recriada em negati-
vo no psiquismo:
Uma das aplicações mais fecundas do conceito de alucinação negativa,
que não se aplica à psicopatologia, mas é parte integrante da normali-
dade, é de conceber a situação descrita por Winnicott do holding, como
estrutura continente, cuja memória permanecerá quando a percepção
da mãe não estiver mais disponível, pelo fato de estar ausente. Nós pro-
pusemos a formulação, em 19679: “a mãe é presa no quadro vazio da
alucinação negativa, e torna-se estrutura enquadrante para o próprio
sujeito. O sujeito se constrói onde aconteceu a investidura e não o inves-
timento do objeto”. (Green, 2008b, pp. 270-271)
8 E dos representantes psíquicos da
pulsão. Green apresenta uma analogia
antropomórca interessante na 2ª
conferência presente no livro Conferências
Brasileiras de André Green (1990a) para
diferenciar um representante de uma
representação. O representante psíquico
da pulsão seria um mensageiro do corpo,
aquele que traz um recado dizendo,
por exemplo, “tenho sede”. A sede seria
manifestação psíquica de um desequilíbrio
iônico das células, do corpo. Na média
dos seres humanos, a sensação de sede
é uma boa solução para o desequilíbrio
iônico, pois fará o sujeito beber água.
Green destaca que isso ocorre na média,
pois se trata de uma mensagem do
corpo construída na evolução da espécie.
Contudo, o mecanismo evolutivo na entrega
do mensageiro pode não condizer com a
situação daquele sujeito; a depender do
estado de desequilíbrio iônico, beber água
pode aumentar a desidratação. Mais que
isso, a vivência, o objeto, o sexual pode
inclusive desviar o mecanismo evolutivo,
por exemplo, quando um desiquilíbrio
iônico é recebido como mensagem de
fome ou de algo de outra ordem. Em
qualquer caso, trata-se de uma mensagem
que carrega uma exigência de trabalho ao
psiquismo.
Com relação à pulsão de morte, Green
parece manter a ambiguidade que a
expressão carrega em Freud, ao aproximar
a ideia de destruição com aspiração a nível
zero no desinvestimento ou desligamento.
Assim, o objetivo (meta) da pulsão de
morte seria aumentar ao máximo a função
desobjetalizante através do desligamento
(Green, 2010c, p.100).
9 Aqui o autor faz referência ao artigo
Narcisismo primário: estrutura ou estado
(1966-1967) e que está publicado no livro
Narcisismo de vida, narcisismo de morte
(1988).
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É neste sentido que falei acima que com a instauração do Eu como or-
ganização o objeto surge como algo separado; o apagamento do objeto
enquanto necessário ao sujeito, intrínseco à ilusão de que o objeto não é
constitutivo, permite que este se estabeleça como objeto de atração ou
repulsa apenas (Green, 2010d, p.301). Na medida que o objeto externo
frusta com suas falhas e se deixa separar - no sentido winnicottiano da
mãe sucientemente boa - a direção da libido muda, voltando-se sobre
o si, para “paliar os efeitos da sua ausência”:
A perda do seio, contemporânea à apreensão da mãe como objeto total
que implica que o processo de separação entre a criança e esta tenha se
realizado, dá lugar à criação de uma mediação necessária para paliar os
efeitos de sua ausência e sua integração ao aparelho psíquico, isto fora
da ação do recalcamento, cuja nalidade é diferente. Esta mediação é a
constituição, no Eu, do quadro materno como estrutura enquadrante.
(Green, 1988b, p.125)
Como vemos, o processo transcorre como um retorno ou uma dobra
sobre si, para dar conta de uma (necessária) falha ambiental. Envolve
também satisfação autoerótica no momento que o objeto se congura
como ser total10. Vejamos mais um trecho:
O fato de que a perda do objeto coincida com o momento em que se
reúne o órgão que proporciona a satisfação, o seio, com aquela que dele
está provida, a mãe, e que esta perda desemboque no autoerotismo in-
augural, pode fazer pensar que também pôde ser interiorizado o vínculo
do órgão com a pessoa. Esta interiorização não culminará na consciên-
cia de uma forma corporal, mas sim pelo fechamento dessa modalidade
circulatória dos investimentos, no sentimento de uma autonomia, de
uma perfeição, de uma libertação do desejo, pela criação simétrica, ape-
nas da apreensão global e unicadora do Eu da criança, como Lacan o
descreveu no estádio do espelho. (Green, 1988b, p.130)
Green argumenta então que o narcisismo primário, “momento” em que
a libido faz um retorno sobre o Eu e este se fecha como em um circuito,
não seria apenas um estado, uma fase. O narcisismo primário, na medi-
da que a mãe do holding winnicottiano seja internalizada como estrutu-
ra enquadrante, torna-se uma estrutura11 psíquica central.
Se pensarmos com o modelo do autor, é como se nesse momento o
duplo limite se juntasse, a fronteira com o real se voltasse formando um
modelo fechado ao encostar na fronteira do somático12, quando o mais
externo se aproxima do mais interno do sujeito. A gura formada, um ci-
lindro, capta a ideia de fechamento do Eu, tal como uma esfera. Imagem
que transmite tanto a ideia do Eu do narcisismo primário oferecendo
um contorno ao sujeito quanto à da vesícula protoplasmática oferecida
por Freud em Além do princípio do prazer (1920).
10 “O auto-erotismo poupa o objeto e não
o perde totalmente, pois é no momento
em que o sujeito pode ter uma apreensão
completa da mãe que a pulsão se torna
auto-erótica” (Green, 1988, p.130).
11 “O narcisismo primário não pode ser
compreendido como um estado, mas sim
como uma estrutura” (Green, 1988, p.141).
12 Esta esclarecedora imagem foi oferecida
por Fernando Urribarri em grupo de
estudos em encontro ocorrido em São
Paulo em 18/08/2017.
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A operação de fechamento no narcisismo primário, portanto, não se dá
sem que haja intricamento pulsional, a pulsão de morte atua operando
o desligamento em relação ao objeto externo. Não se trata somente de
pulsão de vida ou de libido, é preciso considerar o papel da pulsão de
morte nesta operação potencialmente estruturante de espaço interno
ao sujeito, que poderá, a partir de então, ser e agir a partir de um centro
próprio. Quando essa operação não se estabelece sucientemente, o
sujeito opera nas fronteiras, descentrado de si mesmo.
Na clínica, isto se apresenta quando o conito não está no intrapsíquico,
mas se expressa no intersubjetivo, no que o outro fez. Segundo Candi
(2010), é quando vemos mais intensamente defesas como clivagens ou
identicação projetiva, ou, ainda, o negativo do trabalho do negativo,
com desinvestimentos, desobjetalização (função desobjetalizante13) e
narcisismo negativo (destrutividade)14. Nos chamados casos-limite ou
borderline, a destrutividade é protagonista. Para Candi (2010), são si-
tuações em que o enquadre analítico ca comprometido, onde a con-
tratransferência entra de forma intensa e onde o pensamento vivo do
analista é requisitado, quando o silêncio é vivido com sofrimento. O ana-
lista é demandado tanto afetivamente quanto corporalmente inclusive,
situações nas quais o papel do analista é a de se manter vivo e com
capacidade de pensamento.
E Gabriel?
Green sugeriu que a impossibilidade de determinados pacientes em escutar
o analista não se trata da resistência típica da neurose, nem de ataques aos
vínculos presentes nas psicoses (Bion), mas de destrutividade que se volta
essencialmente contra o funcionamento psíquico do sujeito, por meio de
evitação associativa na análise, e entendo que podemos estender também
para a capacidade de pensar de forma geral. Na posição fóbica central, a im-
possibilidade de escuta de si e do analista seria manifestação da negativida-
de no tratamento (“não consigo escutar”, “não sei”, “não lembro”), expressão
do trabalho do negativo em que haveria “alucinação negativa do sujeito por
ele mesmo” (Green, 2010, p.74). Vejamos um trecho em que a ideia foi mais
bem explicada:
o que é preciso levar em conta é o agrupamento dos diversos traumas evo-
cando-se uns aos outros, e em que o esforço do sujeito leva à denegação do
que eles podem mutuamente pôr em comunicação para a psiquê, porque
eles desenham menos uma evolução integradora do que assumem a forma
de uma persecução repetitiva, levando, no limite, à denegação da própria
realidade psíquica do sujeito ou da imagem que ele tem de si mesmo. Isso
explica que a posição fóbica esteja no centro da organização psíquica, con-
trolando, em cada circunstância, todas as vias que conduzem a isso assim
como todas aquelas que partem daí, porque o quadro formado obrigaria
o sujeito a reconhecer sua raiva, seu ciúme, e, mais do que tudo, sua des-
trutividade, forçando-o a se ver bem no fundo do desamparo, movido de-
fensivamente por uma onipotência que só pode se situar na transgressão,
ultrapassado por uma excitação sem m mobilizando uma energia de des-
espero. (Green, 2010a, p.75)
13 Função objetalizante e desobjetalizante
são construções do autor. Sobre a função
objetalizante:
Sugerimos a hipótese de que o objetivo
fundamental das pulsões de vida é
assegurar a função objetalizante. Isso não
signica apenas que seu papel seja o de
criar uma relação com o objeto (interno e
externo), mas também que ela se revele
capaz de transformar estruturas do objeto
(Green, 2010c, p.99).
Em seguida, sobre função desobjetalizante:
Inversamente, o objeto da pulsão de morte
é realizar, tanto quanto possível, uma
função desobjetalizante pelo desligamento.
Esta qualicação permite compreender que
não é somente a relação com o objeto que é
atacada, mas também todos os substitutos
deste – O Eu, por exemplo, e o fato mesmo
do investimento na medida em que ele
sofreu o processo de objetalização. (Green,
2010c, p.100)
14 Para completar esta descrição,
acrescento que propus distinguir um
narcisismo primário positivo (vinculável
a Eros), tendendo para a unidade e a
identidade, e um narcisismo primário
negativo (vinculável às pulsões de
destruição) que não se manifesta pelo
ódio ao objeto – este é perfeitamente
compatível com o reuxo do narcisismo
primário positivo – mas pela tendência do
Eu a desfazer sua unidade para tender a
zero. Isto se manifesta clinicamente pelo
sentimento de vazio (Green, 1988a, pp.266-
267)14 “Para completar esta descripción,
voy a acrecentar que propuse distinguir
un narcisismo primario positivo (vinculable
a Eros), que tiende hacia la unidad y la
identidad, y un narcisismo primario negativo
(vinculable a las pulsiones de destrucción),
que no se maniesta a través del odio al
objeto — este es perfectamente compatible
con el reujo del narcisismo primario
positivo — sino por la tendencia del Yo a
deshacer su unidad hacia el cero. Esto se
maniesta clínicamente por el sentimiento
de vacío” (Green, 1988a, pp. 266-267).
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A fórmula que impedia a capacidade de pensar, com suas denegações,
eram um alerta que dizia “pare, daqui adiante há perigo!”. Green com-
preendeu que esse movimento sempre ocorria antes de um avanço no
tratamento, um passo para trás antes de um passo à frente. A defesa em
questão, que evitava ligações, seria “requisitada” pelo próprio processo
analítico nesses casos. Nestas situações, o analista deve recuperar sua
capacidade de pensar.
Gabriel passou anos sem visitar a mãe, até que ela adoeceu e eles se
reaproximaram. Quando sua esposa conheceu a sogra, achou-a excep-
cional. Gabriel reencontrou, então, a mãe amorosa desbotada pelo apa-
gamento expresso no “isto não pode ter sido eu”: vejo em minha memó-
ria, lembro, mas nego. Memórias de circulação amorosa puderam então
retornar ao consciente. Green conta sobre intensos desenvolvimentos
no tratamento e nas associações do paciente que ocorreram nas poucas
sessões à época deste reencontro (real e gurado).
O apagamento comum às falas de Gabriel seria uma forma de se fazer
cumprir a punição por uma culpa que demanda reparação interminável:
a culpa de Gabriel era consequência do assassinato primário da mãe,
cuja nalidade era realizar a excorporação do objeto abandonador. No
entanto, extrair esse pedaço de dentro de si, essa evacuação, deixava
um vazio.
Para fazer frente ao vazio deixado, condutas adictas de autoerotismo,
alcoolismo, bulimias ou seduções compulsivas podem surgir, situando o
objeto como substituível. E se o objeto é substituível, é possível se des-
fazer dele. A marca que este objeto deixa é a presença de uma ausência.
Tal paradoxo, Gabriel só podia apreender a partir do vazio deixado. O
assassinato primário da mãe recuperava a potência paterna, mas esta
não livrava Gabriel de seu aprisionamento. O Supereu não conseguiu se
estabelecer como o herdeiro do complexo de Édipo, apenas como ins-
tancia que promulgava uma punição que era também a própria trans-
gressão, na medida que a fantasia faz surgir a coisa como já realizada.
Realizada porque admitida psiquicamente na cumplicidade da troca de
olhares com a mãe, que aproximava Gabriel de sua mãe de forma con-
denável pelo pai. O pai, um presente ausente, neste sentido, só con-
seguia interditar a partir do completo afastamento, da separação total
entre Gabriel e a mãe, foi o pai que o levou para longe. Green compreen-
deu a existência de uma fantasia de Gabriel quanto ao pai ter feito isso
para ter a mãe apenas para ele. Havia um terceiro na gura do pai, mas
não era um pai que garantia a interdição da mãe, não a um preço razoá-
vel. O preço a se pagar era o exílio de Gabriel.
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Considerações nais
Ler André Green nem sempre é tarefa fácil. O generoso volume de boas
ideias presentes nas linhas de seus textos somado a certa redundância
como estilo de escrita deixa por vezes o leitor aturdido. Tudo parece
fazer sentido e ser relevante. O problema é que, quando tudo é relevan-
te e merece destaque, nada de fato se destaca. Isso não signica que
seja menos relevante. Extrair a essência de um conceito nesse cenário
é correr o risco de reduzir a complexidade do pensamento do autor.
Risco que se apresentou aqui, desde a apresentação do caso com o pen-
samento clínico até a teoria que lhe deu embasamento, mas a contri-
buição que o presente artigo buscou trazer para a melhor compreensão
do pensamento deste importante psicanalista francês fez jus ao desao.
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