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INTERCAMBIO PSICOANALÍTICO, 14 (2), 2023, pp 24 - 34
ISSN 2815-6994 (en linea) DOI: doi.org/10.60139/InterPsic/14.2. 2/
PSICANÁLISE, O FUTURO DE
UMA DES-ILUSÃO
PSICOANÁLISIS, EL PORVENIR DE UNA
DES-ILUSIÓN
PSYCHOANALYSIS, THE FUTURE OF A
DISILLUSIONMENT
Mario Pablo Fuks
Sedes Sapientiae
Correio electrônico:
A/C de Lucia B. Fuks - bucia@uol.com.br
Para citar este artículo / Para citar este artigo / To reference this article
Fuks M L. (2023) Psicanálise, o futuro de uma des-ilusão
Intercambio Psicoanalítico 14 (2), DOI:doi.org/10.60139/InterPsic/14.2. 2/
Creative Commons Reconocimiento 4.0 Internacional (CC By 4.0)
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RESUMO:
Colocar a psicanálise em análise, eis um dos objetos deste texto. A
difícil tarefa de enfrentar a idealização da psicanálise e produzir des-
locamentos frente aos desaos emergentes. Os obstáculos para um
desenvolvimento mais livre, criativo e menos isolado socialmente, do
movimento psicanalítico. A insistência no desvendamento do processo
de desassujeitamento e da des-ilusão. Uma costura entre o “O Futuro
de uma ilusão”, “Psicologia das Massas e análise do Eu”, e “O Humor”,
ressaltando os temas do poder, do coletivo e do prazer, que desemboca
no jogo entre “desilusão” e “des-ilusão”, onde a operação de des-ilusão
se coloca como capaz de preservar-nos da desilusão, ou de superá-la.
Palavras-chave:
des-ilusão, desassujeitamento, poder, coletivo, prazer.
RESUMEN:
Poner el psicoanálisis en análisis, he aquí uno de los objetivos de este
texto. La difícil tarea de afrontar la idealización del psicoanálisis y pro-
ducir desplazamientos ante los desafíos emergentes. Los obstáculos
para un desarrollo más libre, más creativo y menos aislado socialmen-
te del movimiento psicoanalítico. La insistencia en el desvelamiento
del proceso de desubjetivación y des-ilusión. Una costura entre “El
porvenir de una ilusión”, “Psicología de las masas y análisis del yo” y
“Humor”, destacando los temas del poder, de lo colectivo y del placer,
que desemboca en el juego entre “desilusión” y “des-ilusión”, en que
la operación de des-ilusión se considera capaz de preservarnos de la
desilusión, o de superarla.
Palabras clave:
des-ilusión, desubjetivación, poder, colectivo, placer.
SUMMARY:
Placing psychoanalysis under analysis is one of the objects of this text.
The dicult task of facing the idealization of psychoanalysis and pro-
ducing displacements in the face of emerging challenges. Obstacles
to a freer, more creative and less socially isolated development of the
psychoanalytic movement. The insistence on unraveling the process of
non-subjectivity and dis-illusionment. A seam between “The Futures of
an illusion”, “Group Psychology and the Analysis of the Ego”, and “The
Humor”, emphasizing the themes of power, the collective and pleasure,
wich leads to the game between “disillusionment” e dis-illusionment”,
where the operation of dis-illusion is seen as capable of preserving us
from disillsionment, or of overcoming it.
Keywords:
dis-illusion, non-subjection, power, collective, pleasure.
PSICANÁLISE,
O FUTURO DE UMA DES-ILUSÃO
Mario Pablo Fuks1
1 Mario Pablo Fuks, foi médico
psiquiatra e psicanalista argentino
formado na UNBA. Em 1977 se
estabeleceu em São Paulo, Brasil.
Membro do Departamento de
Psicanálise do Instituto Sedes
Sapientiae. Professor do curso de
psicanálise, coordenador do curso
de psicopatologia psicanalítica e
clínica contemporânea, membro da
equipe editorial doBoletim Online,
membro do Grupo de Psicanálise e
Contemporaneidade e supervisor do
Projeto de Pesquisa e Intervenção
em Anorexia e Bulimia. Delegado
da Flappsip no Congresso de Porto
Alegre. Na Argentina, foi médico-
chefe do Departamento de Adultos
do Serviço de Psicopatologia do
Policlínico de Lanús, professor
adjunto da Cátedra de Psicologia
Médica da Faculdade de Medicina da
UNBA. Coordenador do plano piloto
de formação do Centro de Docência
e Investigação da Coordenadora de
Trabalhadores de Saúde Mental de
Buenos Aires e professor adstrito ao
Departamento de Investigação da
Faculdade de Psicologia da UNBA.
Faleceu em 05 12 2022.
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A partir de um debate promovido, faz algum tempo, por uma revista de psi-
canálise com o título disparador (e provocativo) de “Psicanálise, o futuro de
uma (des)ilusão?”1 que parafraseia o título do trabalho de Freud O futuro de
uma ilusão (1927a), elaborei algumas ideias, partindo deste último texto. O
que segue é uma versão com algumas correções, recortes e agregados, do
que foi apresentado em outra oportunidade.2
Podemos partir da seguinte pergunta: até que ponto a psicanálise e o movi-
mento psicanalítico (tal como outros movimentos, práticas, sistemas de pen-
samento e instituições) podem estar atravessados por ilusões equivalentes
às estudadas por Freud no texto de 1927a, o qual se refere, principalmente,
à ilusão religiosa? Estas têm por efeito o mal-estar ou sofrimento, caracteri-
zado por uma vivência de desilusão (a chamada crise da psicanálise), toda
vez que ela se vê obrigada a defrontar-se com a questão da sua atualidade,
seu passado ou seu futuro. Cabe suscitar aqui o debate acerca da ausência
ou insuciência de um certo processamento especíco desta conjunção.
Apoiados no modelo fornecido pelo processo psicanalítico, podemos per-
guntar-nos se este processamento especíco, que aqui se proporia como
um trabalho de des-ilusão, consistiria em mudanças subjetivas operadas
através de diversos recursos, tais como a historização. A respeito dos obstá-
culos e resistências que esse trabalho comporta, Mijolla (1991), historiador
da psicanálise, comenta que a perspectiva histórica se lhe apresenta como
.. portadora da quarta das feridas narcísicas inigidas ao homem
e às suas ideologias: o homem não é imortal, e tampouco o são o
psicanalista e a ‘Psicanálise’. Para muitos, a recusa radical do caráter
efêmero (objeto da história que xa a memória) de toda a criação
humana [...] está relacionada a uma das mais perigosas atitudes dos
psicanalistas a respeito da sua disciplina: sua idealização, sua ins-
crição dentre os sistemas religiosos de pensamento. (p.13)
Acabar com a idealização. Mas como? Através de um apelo à sensatez? São
muitos os que, de dentro e de fora da psicanálise, têm exposto sua reexão
e sua crítica nesses termos. Entretanto, em geral, tende-se a ver a ilusão no
olho do outro. Isto, por sua vez, dá início a um novo episódio dentro da con-
tenda, à qual Mijolla sintetiza da seguinte maneira:
Pode-se perceber tudo o que isto traduz sobre as lutas, que não
deixam de se manifestar, entre os partidários de uma ‘Psicanálise’
pura e dura (freudiana, kleiniana, lacaniana etc.), tal como se fos-
se portadora de uma verdade intrínseca, a qual os maus atacam e
deformam, e aqueles que denunciam a petricação de uma psica-
nálise dogmática e administrativa para justicar, em nome de sua li-
beração, os desmantelamentos teóricos e práticos que lhe inigem.
(op.Cit., p.19)
1 Anuário Brasileiro de Psicanálise 3. Rio de
Janeiro: Relume Dumará.
2 Originalmente apresentado aos Estados
Gerais da Psicanálise. Disponível em: http://
egp.dreamhosters.com/EGP/132-psicanalise.shtml
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Tudo isto é reconhecível. Entretanto, como sair da ilusão narcisista que nos
induz a ensimesmamentos solipsistas ou guerras de diferenças, pequenas
ou grandes, de forma a poder encarar novas realidades? Encarar, por exem-
plo, um mundo que mudou, que se atravessado por crises de diversas
ordens, com uma instabilidade econômica e remanejamentos massivos na
inserção laboral e prossional. Esta instabilidade acaba por afetar a todos,
especialmente as classes que sustentam a demanda de atendimento psica-
nalítico nos consultórios particulares. Um mundo, também, no qual se recu-
peram, ofensivamente, os rivais organicistas.
Talvez o difícil de incorporar à psicanálise, ou a qualquer sistema de pensamento
instituído, seja justamente um pensamento da mudança (Mendel, 1991) sem
o qual a própria mudança, em andamento, acaba por ser vivenciada como
morte, dispersão, perda de especicidade, descaracterização.
Trataremos de responder a estas questões buscando as referências iniciais
nos próprios textos freudianos. O futuro de uma ilusão é a crítica contunden-
te de um cientista engajado na tradição racionalista e iluminista em defesa
da liberdade de pensamento e contra a sufocante presença da religião na
educação e na cultura em geral. As representações religiosas são analisadas,
nesse texto, como ilusões determinadas por desejos inconscientes infantis e
universais. Cumprem uma função de compensação, consolo e reconciliação
para os seres humanos diante das limitações impostas pela natureza, pelo
caráter inexorável da morte e pela própria cultura. O caminho aberto por
Freud segue o delineamento de um fantasma e sua remissão a algo verda-
deiro na história: a deicação do pai da infância, objeto de nostalgia.
Se pensado hoje, nos termos de uma análise individual, o trabalho de des-
-construção, reconstrução e historicização operaria no sentido de liberar o
peso das reminiscências e traumas, dissolvendo ou remanejando os sinto-
mas e oferecendo uma disponibilidade para a abertura da subjetividade,
para a criação de novos sentidos da existência. Isso corresponde àquilo que
conhecemos do processo analítico, tal como o concebemos hoje.
O problema que surge, porém, é que, no texto de 1927a, não aparecem
claramente o processo e o mecanismo possíveis do desassujeitamento, da
des-ilusão. É descrito sim, com toda a nitidez, aquilo que temos conceituado
como desilusão. Uma combinação de fatores tais como: a perda da coerên-
cia da instituição religiosa, a decepção com os resultados (o mundo não res-
ponde nem corresponde à vontade de Deus) e a crise da credibilidade (as
classes altas já não acreditam), induzem à vivência do perigo do caos moral
e social, da violência desenfreada, do descontrole pulsional.
É imperativo, portanto, mudar as relações entre a cultura e a religião.
Cumpre educar para a realidade educação esta que signicaria a aceitação
de um lugar mais modesto no cosmo, uma resignação com a vulnerabilida-
de humana frente às diculdades da existência e, enm, uma conança na
ciência, na esperança de que, ao aumentar o seu poder, ela tornará possível
suportar a vida.
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Estamos esquematizando o texto, de uma forma quase caricatural, com a
nalidade de poder perlar as diculdades que nos parece detectar. Cabe
aqui, portanto, questionar se não predominaria, em boa parte da argumen-
tação, racionalismo, realismo ou mesmo resignação em excesso. O ideal
iluminista que sustenta a intervenção acabaria, ao mesmo tempo, consti-
tuindo um obstáculo para a análise e para o desenvolvimento da mesma.
A interpretação da signicação da cultura e o inventário dos diversos com-
ponentes que conguram o patrimônio cultural da humanidade e suas dife-
rentes funções, por mais polêmicos que possam ser em um ou outro aspec-
to, transformam esse extraordinário texto em peça indispensável para toda
e qualquer tentativa de elaboração psicanalítica sobre tais questões. Não
obstante, o próprio autor cou insatisfeito com seu trabalho. Comentava
que era pouco psicanalítico e pouco penetrante. Peter Gay (1989), autor de
uma conhecida biograa, fala extensamente do mal-estar de Freud, ofere-
cendo detalhes que ilustram a complexidade do seu momento histórico, a
ambição da sua obra e sua conjuntura pessoal.
Trataremos de discutir certos aspectos do texto, sinalizando elementos que
podem aportar alguma resposta à questão suscitada (o processo de des-
-ilusão). Seguiremos um ordenamento que passa pelos temas do poder, do
coletivo e do prazer.
Ao referir-se à reedição da impotência e desamparo infantis, como efeito
da quebra narcísica resultante do confronto do sujeito com a força das li-
mitações apontadas (natureza, inexorabilidade da morte, cultura), não ca
delimitado, pelo menos nesse ponto, o caráter diferencial e especíco das
determinações culturais e sociais: “A impressão terricante do desamparo
da infância despertou a necessidade de proteção da proteção através do
amor –, a qual foi proporcionada pelo pai; e o conhecimento de que esse
desamparo duraria a vida toda...” (Freud, 1927a., p.266) foi a causa da cren-
ça. Sobre a mesma questão, Freud dizia pouco antes: “Quando o indivíduo
em crescimento descobre que está destinado a permanecer criança para
sempre, que nunca poderá passar sem proteção contra estranhos poderes
superiores, empresta a esses poderes as características pertencentes à gu-
ra do pai...”. (op. Cit., p. 258)
Permanecer criança signica abrir mão não da onipotência, mas também
do poder pessoal que nasce de suas iniciativas, de seus atos e do sentido
emergente dos mesmos. Desta maneira, o parágrafo de Freud receberia um
complemento: Quando o adolescente se encontra em condições de perce-
ber que não poderá aceder ao exercício do grande poder que idealizava,
desde a sua infância, como sendo o do pai, e que tampouco poderá exercer
aquele mais limitado, mas que por justiça lhe corresponde, o poder de se
tornar ativo na produção das suas condições de existência, então “o indi-
víduo em crescimento descobre que está destinado a permanecer criança
para sempre”.
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Torna-se necessário, portanto, incluir uma hipótese referida a um poder de
ação um ato-poder, tal como dene Gérard Mendel (1991) que possi-
bilite a saída do imaginário infantilizante, psicofamiliar. Esta questão está
claramente colocada em outros textos, principalmente Totem e Tabu (Freud,
1913) e Psicologia das Massas e Análise do Eu (Freud, 1921), onde a saída da
horda primitiva se faz através de um ato que inicia uma ruptura, tanto com
domínio quanto com uma sujeição.
Entrando já no ponto seguinte, notemos que esta saída tem um momento
denidamente coletivo. Surpreendente como, mesmo no texto de 1927a,
quando começa a falar das limitações e perigos que afetam ao homem e,
ao referir-se à natureza, Freud acaba por incluir uma observação, diga-se,
incidental, sobre o valor do coletivo:
Uma das poucas impressões graticantes e exaltantes que a humanidade
pode oferecer ocorre quando ela, face a uma catástrofe elementar, esque-
ce as discordâncias da sua civilização, todas as diculdades e animosidades
internas, e lembra-se da grande tarefa comum que é preservar-se contra o
poder superior da natureza. (p. 247, grifo nosso)
Mas qual será a metapsicologia desse lembrar-se que temos grifado? Por
que Freud não pode conceber uma graticação e exaltação equivalentes em
outras circunstâncias? Por que a passividade dos homens com relação ao
trabalho é considerada, neste texto, como um dado primário e essencial?
E, principalmente, que papel poderia corresponder às empresas comuns,
ao desenvolvimento da cooperação e da solidariedade, na superação desse
terror paralisante, dentro do processo de desassujeitamento que estamos
procurando delimitar?
Todos esses elementos abrem a questão do coletivo, donde também se per-
la o grupal. Em O futuro de uma ilusão problematiza-se a oposição infan-
til-adulto. Em Psicologia das Massas e Análise do Eu a oposição indivíduo-mas-
sa. Ambas supõem processos cruciais de passagem, de transformação de
psicologias e de modos de subjetivação: por um lado, identicamos a saída
da psicologia de massas; por outro, a superação da neurose infantil da hu-
manidade. São ambas partes de um mesmo processo trabalhando em veto-
res diferentes que apontam, um, para um passado mítico; o outro, para um
futuro utópico. Nos dois casos, delineia-se a gura de um grupo que inicia
e sustenta o processo: um, mais nítido, de guerreiros parricidas que inven-
tam poemas épicos; outro, mais incidental, constituído por “companheiros
de descrença” que cultivam, como veremos, o humor. Finalmente, o prazer.
Poder-se-ia acrescentar ao confronto entre a atitude religiosa ilusionista e a
atitude cientíco-racional realista, uma terceira alternativa, que seria a atitu-
de humorística. Freud escreve O humor (1927b) no mesmo ano em que pu-
blica O futuro uma ilusão. “Como os chistes e o cômico, o humor tem algo de
libertador, mas possui também qualquer coisa de grandeza e exaltação.” O
humor é o triunfo do narcisismo na armação vitoriosa da invulnerabilidade
do ego. “O ego se recusa a ser ofendido pelas provocações da realidade, a
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permitir que seja compelido a sofrer.” Os traumas do mundo externo não o
afetam, não passam de ocasiões para ele obter prazer. Esse último aspecto
constitui um elemento inteiramente essencial do humor.” [...] “O humor não
é resignado, mas rebelde. Signica não apenas o triunfo do ego, mas tam-
bém o princípio do prazer, que pode aqui armar-se contra a crueldade das
circunstâncias reais. (Freud, 1927b., p. 325)
Como consegue este desígnio sem abandonar a saúde psíquica, tal como
na neurose, a loucura, a intoxicação, a auto-absorção e o êxtase? O mes-
tre está, neste momento, antecipando as técnicas que desenvolverá em O
mal-estar na civilização (Freud, 1930). O humorista comporta-se como um
adulto frente a uma criança, ao sorrir diante da trivialidade dos interesses
e sofrimentos que parecem tão grandes a esta. E “[...] ao identicar-se, de
certo modo, com o pai, reduz os demais ao papel de crianças” (Freud, 1927b,
p. 325). Esta situação intersubjetiva tem uma conguração que evoca uma
reunião parecida entre os descendentes da aliança fraterna, que Freud ima-
gina, em Psicologia das Massas e Análise do Eu, no momento da passagem
da psicologia de massas para a psicologia individual. O primeiro poeta épico,
através da criação do mito, consegue desligar-se da massa, mas encontra o
caminho de regresso a ela; apresenta-se e relata a esta massa as façanhas
do herói inventado por ele, que é ele próprio. “Assim desce até a realidade e
faz elevar-se a massa até a fantasia.” (Freud, 1921, p. 103)
Freud mostra, também, em O Humor certas situações que correspondem
a um tipo, talvez mais primário e importante, de atitude humorística que a
pessoa adota para consigo mesma, a m de manter afastados possíveis so-
frimentos. “O humorista tem transposto a ênfase psíquica do seu ego para
o seu superego, herdado da instância paterna, e consegue assim, com essa
nova distribuição de energia, conter as possíveis reações do ego.” (Freud,
1927b, p. 327) Esta explicação em termos de deslocamentos e redistribui-
ções constitui, naquele momento, hipóteses ad hoc, para uma nova forma
de representação metapsicológica do acontecer psíquico, uma segunda
tópica ampliada e enriquecida, que explica o acontecimento da eclosão de
um delírio, por exemplo, a partir do investimento de ideias preexistentes.
“Também a cura de tais crises paranóicas residiria não tanto numa resolução
e correção das ideias delirantes, quanto numa retirada delas da catexia que lhes
foi emprestada(op. Cit., p. 328, grifos nossos).
Observamos aqui uma aproximação com a questão suscitada a partir de O
futuro de uma ilusão. Ao mesmo tempo, e preservadas as distâncias, essa
frase de Freud faz evocar uma colocação de Jurandir Freire Costa, em en-
trevista na publicação mencionada no início: “Acho que com os problemas
humanos, assim como com os problemas psicanalíticos, acontece o que
Wittgenstein dizia sobre os problemas losócos: não são resolvidos, são
abandonados.” (Freire Costa, 1991)
A intenção do superego através do humor, continua o texto, é dizer-nos:
“Olhem, aqui está o mundo, que parecia tão perigoso! Não passa de um jogo
de crianças, digno apenas de levá-lo na brincadeira.” (Freud, 1927b, p.330)
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Vislumbra-se aqui o processo que possibilita o desassujeitamento da ilusão
religiosa, ou de qualquer outra equivalente. A questão é operar a des-ilusão,
uma vez que podemos preservar-nos da desilusão, ou superá-la, pela via de
um processo em que as instâncias ideais parecem desempenhar importan-
te papel. Visualizam-se dinâmicas e economias possíveis desta operação. Ela
é liberadora e exaltante porque permite recuperar tanto um mundo não-
-sinistro quanto a inteligência lúdica da criança, dos quais o adulto médio
cou expropriado ao submeter-se ao domínio consolidado “da inibição para
pensar a sexualidade, a inibição religiosa e a lealdade política (monárquica)”.
(Freud, 1927a, p.290). É um jogo de crianças porque possibilita a elaboração
psíquica através da criação, recriação e proliferação do sentido próprias do
chiste, do sonho, da fantasia, da construção de romances de tipos diversos,
da criação artística, do humor, da invenção, recursos todos estes equivalen-
tes ao brincar das crianças.
Através dos diferentes eixos traçados, ca melhor situado tanto aquilo
que no caminho percorrido pela psicanálise lhe origem e a associa ao
grande projeto liberador, quanto aquilo que a torna especíca e singular,
abordando o ideal que a impulsiona assim como aquilo que, no seu proces-
so de produzir e produzir-se, vai-se instituindo.
Há certas questões, ainda relativas ao tema, que mereceriam um es-
clarecimento através de articulações conceituais propostas neste trabalho.
O uso excessivamente extenso da noção de desilusão teve a intenção de
fazê-la jogar com ilusão e com des-ilusão. Limitando-a ao seu uso habitual, a
desilusão, enquanto vivência, tende a expressar o resultado de uma perda,
que pode se dar no nível do objeto, no nível do ego ou no nível do próprio
ideal. Ou nos três simultaneamente, tal como na canção de Chico Buarque
de Hollanda1:
Se lembra do futuro
que a gente combinou?
Eu era tão criança e ainda sou.
Querendo acreditar que o dia vai raiar
só porque uma cantiga anunciou
A perda está sendo processada por uma combinação das diferentes ins-
tâncias incluindo um companheiro de elaboração, a Maninha. É o trabalho
de luto, fundamental para a preservação do equilíbrio psíquico e para a pos-
sibilidade de mudança individual e coletiva, que faz parte do trabalho mais
amplo que estamos considerando.
Existem perdas que assumem intensidade e força patológicas, como
quadros melancólicos, vivências de m-de-mundo, despersonalizações, pâ-
nicos. Estas perdas se confundem ou se combinam, frequentemente, com
experiências de perigo, desorientação e perda de referências exteriores.
Em termos de vivência, mal se pode falar aqui em desilusão. Trata-se de
situações traumáticas coletivas, nas quais o ego se encontra na situação de
paralisia e inermidade que Freud imagina para uma situação de ameaça do
descontrole pulsional, frente a uma realidade sinistra. O ego, nestas circuns-
tâncias, tenderia a funcionar sob um regime que está para além do próprio
3 Chico Buarque, “Maninha”, 1977.
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prazer, submetido à compulsão de repetição e a uma tendência ao esvazia-
mento de todo o sentido. Delineia-se aqui um estado limite no que se refere
à existência ou à experiência de uma subjetividade. A atividade do ideal do
ego possibilita a ativação dos sistemas de fantasmatização e simbolização,
os quais permitem a elaboração psíquica. Reinstala-se o processo de subje-
tivação. Com esta discussão, acabamos por nos aproximar de alguns desen-
volvimentos posteriores a Freud.
alguns anos, Hanna Segal apresentou um trabalho muito importante
num congresso internacional de psicanalistas – no qual se impediu que sua
leitura fosse feita em sessão ocial intitulado “O silêncio é o crime verdadei-
ro” (1985), em que denunciava e analisava, com extensão e profundidade, o
mortífero jogo de ilusões coletivas que envolvia os governos e complexos
militar-industriais, implicados na corrida armamentista nuclear. A palavra
silêncio do título referia-se também à atitude assumida pelos analistas na
América do Norte diante da perseguição antissemita na Alemanha nazista. A
ilusão de eternidade, ao que parece, consegue-se através de omissões, recu-
sas e isolamentos que acabam por ter um custo que já resulta difícil negar.
A partir da década de 1980, uma série de analistas latino-americanos (em
geral brasileiros, uruguaios e argentinos) produziram trabalhos referentes
ao efeito, na subjetividade, de situações sociais de alto impacto traumático.
Maren Viñar e Marcelo Viñar (1992), Jurandir Freire Costa (1984, 1988), Gilou
Garcia Reinoso (1971) e Hélio Pellegrino (1971, 1986), entre outros,demons-
traram como a perda de vínculos, a deterioração e a quebra do sistema de
ideais, bem como o m de projetos coletivos, impõem uma subjetividade
fragilizada, quadros de verdadeira demolição da identidade e uma cultura
de violência, entre outros efeitos. Esta linha de trabalhos apresenta uma evi-
dente continuidade do espírito da intervenção e combate no campo político,
cultural e social que caracterizou o trabalho de Freud. um empenho para
construir elementos conceituais que esclareçam e ampliem, ao mesmo tem-
po, a totalidade do campo psicanalítico.
O sistema de ilusões contemporâneas, tal como se congura, parece bem
diferente do sistema estudado por Freud em O futuro de uma ilusão (1927a).
A solda entre a proibição de pensar o sexual, a ilusão religiosa e a lealdade
político-monárquica não mais existe. O que se impõe à possibilidade de pen-
sar parece ser a ilusão-compulsão de consumir, e a lealdade estabelece-se
com os meios de comunicação de massa e os métodos estatísticos em voga.
Concordamos com Marilena Chaui (1997) quando aponta a importância do
“fascínio tecnológico”.
Grandes poderes impessoais e distantes decidem sobre as possibilidades
de sobrevivência, destino econômico e valor da qualicação do trabalho.
Planos de ajuste, remanejamentos dos empregos e demissões apresen-
tam-se como movimentos telúricos ou imposições de uma natureza, ape-
nas explicáveis pelos cientistas e manipuláveis pelos tecnocratas, que atuam
mais sobre populações do que sobre comunidades. O que não comporta,
suporta ou resiste é marginalizado e passará a ser objeto de um gerencia-
mento diferencial e igualmente homogeneizante. Em suma, a margem do
poder possível na gestão autônoma da própria existência viu-se violenta-
mente reduzida.
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A signicação social dos fatos, das causas e dos efeitos tende a se eclipsar
totalmente. Ante o impacto dessubjetivante desse tipo de controle-gestão,
a adesão a seitas religiosas, práticas esotéricas ou tendências fundamenta-
listas procura cobrir o vazio de sentido, conseguindo algum domínio mágico
sobre estas naturezas ou encontrando, através delas, fontes de certeza (Ga-
lande, 1990).
No campo da saúde mental, o objetivismo médico, revitalizado, por um lado,
pela genética e pela química dos neurotransmissores e, por outro, pela es-
tratégia da gestão dos riscos, parece reforçar-se na renúncia de qualquer
necessidade de interlocução (Castel, 1984).
Trata-se de delinear, a partir de tudo isso, um modelo, no qual o modo de
operar psicanalítico pode levar ao desenvolvimento de experiências que
sirvam para contra efetuar um trabalho de ressubjetivação que devolva ao
indivíduo a sua relação com o coletivo, que recupere a dimensão tempo-
ral, um ideal a ser sustentado e a ética a ser instituída numa ação que será
desenvolvida. Em muitos desses casos, podem operar pela simples possibi-
lidade de um espaço de expressão daquilo que fervilha espontaneamente
nas margens e fendas dessas novas demarcações (Saidon, 1994; Stolkiner,
1994).
O movimento psicanalítico tem, atualmente, uma constituição heterogênea
e de grande diversidade que o diferencia de outros momentos. Seus agru-
pamentos têm diferentes graus de organicidade. A possibilidade efetiva de
desvinculação da análise e do analista de uma regulamentação institucio-
nal, promovida em espaços chamados alternativos, nos anos 1970, exis-
te décadas e tem contribuído para oxigenar uma considerável parte do
ambiente. Entretanto, as necessidades de reconhecimento e autorização
intensicadas, dentro da psicanálise, pelos efeitos destas tendências merca-
dológico-individualistas descritas, simultaneamente massicantes, acentua-
das pela crise econômico-ocupacional das camadas médias, leva a uma luta
competitiva pela ocupação de espaços e ao desenvolvimento de carreiras
multi-institucionais. As posições dogmáticas, burocrático-administrativas ou
monopolizadoras, atravessadas ou sustentadas pelas ilusões consideradas,
criam obstáculos para um desenvolvimento mais livre, criativo e menos iso-
lado socialmente.
As possibilidades de desassujeitamento dependem do processamento coleti-
vo que se intencionou delinear. Onde este processo se desenvolve, a clínica,
a teoria, a investigação e os projetos adquirem nova vida.
34 / FLAPPSIP
INTERCAMBIO PSICOANALÍTICO, 14 (2), 2023, pp 24 - 34
ISSN 2815-6994 (en linea) DOI: doi.org/10.60139/InterPsic/14.2. 2/
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