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INTERCAMBIO PSICOANALÍTICO, 14 (2), 2023, pp 35 - 57
ISSN 2815-6994 (en linea) DOI: doi.org/10.60139/InterPsic/14.2. 3/
DA SÍNTESE DIALÉTICA À
ORDEM PARADOXAL:
A TERCEIRIDADE COMO
CAMPO ANALÍTICO NA CLÍNICA
CONTEMPORÂNEA
.
DE LA SÍNTESIS DIALÉCTICA AL ORDEN
PARADÓJICO: LA TERCERIDAD COMO
CAMPO ANALÍTICO EN LA CLÍNICA
CONTEMPORÁNEA
FROM DIALECTICAL SYNTHESIS TO
PARADOXICAL ORDER: THIRDNESS AS AN
ANALYTICAL FIELD IN CONTEMPORARY
CLINICS
Camila Braz Padrão
Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro
ORCID 0009-0009-9624-9903
Correio electrônico: cpadrao.psi@gmail.com
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Braz Padrão C. (2023) DA SÍNTESE DIALÉTICA À ORDEM PARADOXAL:
A TERCEIRIDADE COMO CAMPO ANALÍTICO NA CLÍNICA CONTEMPORÂNEA
Intercambio Psicoanalítico 14 (2), DOI:doi.org/10.60139/InterPsic/14.2. 3/
Creative Commons Reconocimiento 4.0 Internacional (CC By 4.0)
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RESUMO:
Este artigo busca abordar a noção de terceiridade como saída teó-
rico-clínica para os desaos da clínica contemporânea, diante da
qual o modelo freudiano das psiconeuroses mostrou-se insuciente
e inadequado. Diante disso, procuramos nos afastar das noções de
conito e dualismo da psicanálise clássica e propusemos a ideia de
terceiridade numa acepção espacial que funda um novo campo ana-
lítico inscrito sobre uma lógica paradoxal, a qual atua como subsídio
teórico-clínico à psicanálise contemporânea.
Palavras-chave:
psicanálise contemporânea; terceiridade; paradoxo.
RESUMEN:
Este artículo busca abordar la noción de terceridad como salida teóri-
co-clínica para los desafíos de la clínica contemporánea, ante la cual
el modelo freudiano de las psiconeurosis se ha mostrado insuciente
e inadecuado. Ante esto, procuramos alejarnos de las nociones de
conicto y dualismo del psicoanálisis clásico y proponemos la idea
de terceridad en una acepción espacial que funda un nuevo campo
analítico inscrito sobre una lógica paradójica, que actúa como sopor-
te teórico-clínico para el psicoanálisis contemporáneo.
Palabras clave:
psicoanálisis contemporáneo, terceridad, paradoja.
ABSTRACT:
This article seeks to address the notion of thirdness as a theoreti-
cal and clinical approach to the challenges of contemporary psycho-
analysis. In the face of which, the freudian model of psychoneuroses
has proven to be insucient and inadequate. Therefore, we aim to
move away from the concepts of conict and dualism in classical
psychoanalysis and propose the idea of thirdness in a spatial sense
that establishes a new analytical framework based on a paradoxical
logic, which serves as a theoretical and clinical aid to contemporary
psychoanalysis.
Keywords:
contemporary psychoanalysis, thirdness; paradox.
DA SÍNTESE DIALÉTICA À ORDEM PARADOXAL:
A TERCEIRIDADE COMO
CAMPO ANALÍTICO NA CLÍNICA
CONTEMPORÂNEA
Camila Braz Padrão1
1 Psicóloga, psicanalista, Mestre em
psicologia clínica (PUC-Rio), membro
do Fórum de psicanálise do CPRJ.
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As pesquisas atuais no campo psicanalítico têm como ponto de partida a ex-
periência clínica contemporânea na qual o psicanalista se defronta com tipos
de sofrimento especícos, como psicossomatoses, transtornos alimentares,
adicções, síndromes do pânico, quadros depressivos e ansiosos. Embora
guardem diferenças entre si, tais quadros têm sido frequentemente utili-
zados com um sentido aproximado e estariam subscritos sob expressões
como “estados-limite” (Green, 1990) e “sofrimentos narcísico-identitários”
(Roussillon, 1999), dentre outras. Estas congurações subjetivas eviden-
ciam um afastamento considerável com relação à nosograa identicada
por Freud. São pacientes cujos sintomas não estão circunscritos ao modelo
teórico-clínico clássico da psicanálise freudiana, que tem como base as psi-
coneuroses, o que evidencia a necessidade de novos modelos de referência,
uma vez que denuncia a insuciência do modelo freudiano, tanto para sua
compreensão teórica quanto para seu manejo clínico.
Os pacientes contemporâneos se apresentam de modo muito diverso dos
clássicos pacientes de Freud: experimentam um sentimento de vazio, tra-
zem queixas difusas, se apresentam em silêncio, fazem uso predominante
da clivagem como defesa e não do recalque, além de apresentarem cons-
tantemente sintomas corporais e passagens ao ato. Sua dinâmica psíquica
não se fundamenta num conito psíquico centrado no Complexo de Édipo e
em sua correlata angústia de castração. Tudo isto nos leva a pensar em con-
sideráveis prejuízos no uso da associação livre e no campo da simbolização.
A clínica dos chamados “casos difíceis” leva o analista, então, a afastar-se da
dimensão do conito psíquico, como descrito por Freud nas neuroses, e a
promover uma compreensão expandida, não focada no dualismo freudia-
no e nem na ideia de conito, mas na concepção de um campo de forças:
um espaço compartilhado na experiência clínica, que vai além do campo
transferencial concebido por Freud, da análise do intrapsíquico e da mera
revelação de conteúdos inconscientes. Sua dinâmica psíquica parece mais
relacionada a vivências traumáticas vividas num período anterior e mais
precoce, no qual a capacidade de simbolização existe apenas de modo inci-
piente. Trata-se, portanto, de problemáticas narcísicas, cuja angústia corres-
pondente diz respeito à intrusão/abandono do objeto, o que Green (1990)
denomina “angústia de separação/intrusão”. Tais pacientes parecem ter
como origem de seu sofrimento algo precoce que aponta para suas rela-
ções primárias de objeto e o modo pelo qual tais experiências intersubje-
tivas forjaram sua constituição subjetiva e narcísica. Todo este contexto
evidencia um deslocamento da problemática da neurose - fundada na ideia
do conito psíquico diante de um desejo que encontra uma proibição - para
uma questão mais elementar, que versa mais sobre o existir e menos sobre
o desejar, pois lhe é anterior.
Um autor que muito contribui para o manejo clínico e a compreensão teó-
rica destes casos é Roussillon. O autor esclarece que, em tais problemáticas
clínicas, o sujeito está ameaçado em seu sentimento identitário, pois o que
está em jogo é a constituição narcísica. Descreve, então, que se trata de uma
“clínica das patologias do ser”, o que aponta para diculdades precoces, an-
teriores ao Complexo de Édipo, diferindo, portanto, da clínica das neuroses
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- clínica do objeto perdido e constituindo uma clínica da não neurose -
clínica do sujeito perdido na qual são os aspectos narcísicos, que dizem
respeito à integração e à identidade, que se encontram em xeque.
Embora esta clínica aponte para um tempo primário, anterior às relações de
objeto propriamente ditas, o estatuto do objeto não apenas se presentica
neste contexto como se coloca como determinante no processo de consti-
tuição psíquica. Se por um lado a clínica das neuroses aponta para o obje-
to, através da lógica edipiana, constituindo, assim, uma clínica das relações
objetais, por outro lado, o que interessava a Freud naquele momento dizia
respeito, sobretudo, a seus efeitos intrapsíquicos. Paradoxalmente, a clínica
contemporânea é considerada uma clínica das relações pré-objetais/primá-
rias, isto é, referida a um tempo anterior ao reconhecimento de si mesmo
como sujeito e do objeto enquanto tal. Contudo, o estatuto do objeto é pri-
mordial para seu entendimento, na medida em que a problemática narcísi-
ca se encontra precisamente no limite entre o eu e o não-eu, o qual se cons-
titui a partir das relações primárias oferecidas pelo objeto. A este respeito
Roussillon (2013, p.68) arma que “em todas as patologias do narcisismo
encontramos uma dupla ameaça no encontro com o objeto: se estão muito
próximos, são intrusivos, se estão muito distantes, estão abandonando” e se
refere a isso através da expressão “problemática da presença”. Sua posição
se assemelha a de Green (1990), que ao tratar destes “novos casos” utiliza a
denominação “estados-limite”, aos quais articula a existência “de uma dupla
angústia contraditória: a angústia de separação, com todos os problemas
acarretados (...) pelos lutos intermináveis e não vivenciados e a angústia de
intrusão, isto é, de ser invadido pelo objeto” (1990, p.13).
Embora as pesquisas psicanalíticas sobre os “novos casos” apontem com
frequência para uma insistente manifestação da pulsão de morte em seu
sentido destrutivo, excessivo e irrepresentável, Roussillon (2013) em sua
releitura da obra freudiana, destaca dois enunciados que considera funda-
mentais para a clínica contemporânea: (I) as experiências que mais repe-
timos são as mais precoces e (II) elas se repetem devido à fragilidade da
capacidade de síntese do sujeito. Tais armativas não negam sua dimensão
irrepresentável, mas sublinham duas ideias que nos interessam: a ideia de
que as experiências precoces são determinantes e correlatas a um momen-
to de grande fragilidade simbólica, devido à incapacidade integrativa de um
ego incipiente e à ideia de que, precisamente por este fato, há a repetição
de experiências precoces desagradáveis que geram desprazer, mas que
servem ao Princípio de Prazer e constituem defesas. Isto é, conguram ten-
tativas de elaboração do desprazer que acomete o sujeito frente a uma vi-
vência pulsional diante da qual o sujeito ainda não possui recursos psíquicos
para lidar e que, portanto, constitui-se como uma carga pulsional excessiva
e traumática. Um exemplo disso é o jogo do Fort-da, no qual a criança ence-
na repetidamente o desaparecimento e o retorno do objeto de amor, a m
de elaborar sua ausência e garantir internamente seu retorno. Tal exem-
plo não congura uma expressão da pulsão de morte, mas uma tentativa
criativa de ligação e elaboração da criança para lidar psiquicamente com a
ausência do objeto. Ainda sobre este aspecto, Roussillon (2013) destaca que
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os maiores problemas desta fase pré-objetal se referem a ligar-se ao objeto
e dele se diferenciar, evidenciando a “problemática da presença” na base
da constituição narcísica. Ora, mais do que administrar as idas e vindas do
objeto, a criança tem a dupla e paradoxal tarefa de identicar-se com ele e
dele se diferenciar, o que se como um jogo permanente de presença-
-ausência, promovendo a introjeção do outro como parte de si mesmo e,
gradativamente, como objeto interno. Esta operação psíquica complexa e
gradual certamente depende da qualidade do objeto e da dinâmica de pre-
sença-ausência que este pode oferecer ao sujeito em constituição.
Tal problemática se evidencia na clínica contemporânea dos “casos difíceis”
e se reatualiza no setting analítico e na relação transferencial, denominada
como paradoxal, segundo Roussillon (2013) e assim, não podendo ser con-
cebida da mesma forma que fazia a psicanálise clássica. Segundo o autor, o
primeiro desao do analista diante destes casos é trabalhar a paradoxal an-
gústia de invasão/abandono e a dupla ameaça que se dá no encontro do su-
jeito com o objeto: a de ser invadido e a de ser abandonado. O analista pre-
cisaria tornar ausente um objeto assediador que não deixa nenhum espaço
psíquico não invadido para o sujeito se apropriar, mas sem o deixar cair na
angústia de solidão e abandono radical, pois sempre que um objeto intrusi-
vo se ausenta, o que resta é um espaço que, apesar de vazio, o sujeito não
pode habitar ou integrar. O autor, então, traz para a cena transferencial a
problemática da presença/ausência própria aos tempos precoces. Assim, o
analista se constitui como outro e procura estabelecer com o paciente uma
relação objetal positiva: de não-abandono mas também de não-intrusão ou
identificação maciça, buscando, assim, não reeditar na situação analítica o
lugar de objeto que ora invade, ora abandona. Daí reside toda a dificuldade
da técnica, pois, “toda interpretação é intrusiva e toda não interpretação é
abandonante” (2013, p.68), o que nos leva a um suposto impasse analítico
diante do qual parece não haver saída. Inferimos que a solução de tal dilema
seja repensar o estatuto da interpretação na análise e fazer uso de outros
meios de presença não intrusiva na cena analítica. Mas, para tal nalidade,
como propõe Roussillon (2013), é preciso apelar às contribuições de auto-
res pós-freudianos e suas formulações. Tais autores estabeleceram novas
técnicas para o atendimento destes casos, o que inclui uma nova posição
do analista, uma nova concepção e uso da transferência e novos modos de
intervenção, ou seja, uma nova clínica para um novo sujeito.
Neste ponto pedimos licença para uma indispensável digressão. Nos atere-
mos por certo tempo às contribuições daquele que consideramos o precur-
sor da psicanálise contemporânea: Sandor Ferenczi. Considerado l´enfant
terrible da psicanálise, foi um dos mais importantes interlocutores freudia-
nos e contribuiu imensamente para o desenvolvimento da psicanálise. In-
quieto e questionador, Ferenczi promoveu inovações clínicas contundentes
e irrevogáveis, inaugurando um novo fazer psicanalítico e promovendo uma
elasticidade da técnica clássica, que se mostrava claudicante e insuciente
em sua época, principalmente na clínica dos “pacientes difíceis” - justamente
àqueles casos que não se enquadravam no âmbito das psiconeuroses.
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Pelo necessário caráter de mutualidade entre teoria e clínica que sempre
se presenticou em sua experiência e constitui inexoravelmente sua obra,
nos valeremos aqui de algumas técnicas e conceitos especícos de Ferenczi,
considerado o analista da experimentação, por seu caráter obstinado pela
pesquisa teórica e clínica e por sua ousadia questionadora e capacidade ino-
vadora e criativa. Os aspectos que aqui escolhemos destacar dizem respeito,
sobretudo, a inovações propostas pelo autor que deram conta das diculda-
des clínicas e limitações teóricas do modelo freudiano diante da clínica dos
pacientes difíceis.
Já dissemos introdutoriamente que a clínica contemporânea se afasta da
tese freudiana a respeito da prevalência da ideia de conito psíquico, que
toma o recalque como defesa privilegiada. Desde suas pesquisas sobre a
histeria no início da psicanálise, Freud identicou o sintoma histérico como
resultado de um conito psíquico oriundo do encontro de um desejo in-
consciente com uma proibição da moral sexual civilizada da época. Tudo
isto, fornece base para sua teoria acerca das psiconeuroses, passando pela
gênese do ego e do superego (Freud, 1923). Este último surgiria da disso-
lução do Complexo de Édipo, correlato do recalque como defesa. Com o ego
não é muito diferente: diante da proibição moral dos impulsos eróticos pe-
los pais, a criança, a m de não perder os investimentos objetais e preservar
seu objeto de amor, com ele se identica. Tais identicações chamadas de
primárias, iniciam a diferenciação do Ego a partir do Id, instância primera e
indiferenciada de onde partem todas as catexias pulsionais.
O pensamento freudiano toma como base o dualismo, isto é, um conito ini-
cial entre duas forças antagônicas que resulta num sintoma como formação
de compromisso, a partir do recalque como defesa. Neste sentido, obser-
vamos que, ou o desejo prevalece e permanece consciente ou a censura o
vence e ele é lançado ao inconsciente através do recalque. Podemos inferir
que o dualismo freudiano naturalmente comporta uma acepção dialética,
na medida em que assume a ideia de que uma tese encontra uma antítese
e tal conito culmina numa síntese. Pensar na dialética como fundamento
losóco do dualismo freudiano faz sentido também se considerarmos os
esforços de Freud em fundar a psicanálise como um campo de saber cien-
tíco, calcado em métodos e demonstrações e inserida no campo da racio-
nalidade e previsibilidade. Ora, no decorrer de toda a sua obra, o que Freud
mais faz é promover diálogos com o leitor a m de convencê-lo de suas teses
através de argumentos lógicos e exemplos comprobatórios. Seus esforços
se aproximam da lógica dialética de Platão (mundo das ideias X mundo das
coisas), do uso do diálogo na busca da verdade e da compreensão racional
do que aparentemente não possui razão - os ataques histéricos, por exem-
plo, que eram interpretados como possessões demoníacas. Aproximam-se
também do silogismo dialético aristotélico, para o qual premissas prováveis
buscam comprovação para assim ganharem a cienticidade necessária que
lhes confere o estatuto de Verdade (Japiassú e Marcondes, 2008).
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Mas por qual motivo aludir a estas considerações a respeito do pensamen-
to freudiano e da estrutura teórica presente em sua obra neste momento?
Nosso intuito aqui é diferenciá-lo do pensamento e desenvolvimento teóri-
co-clínico de Ferenczi, que se coaduna com o que propomos neste trabalho:
a superação de uma visão dualista ou de síntese dialética, própria à clínica e
à metapsicologia clássicas e a consequente adesão a um pensamento plu-
ralista, mais complexo e paradoxal, que dê conta dos “novos casos”. A este
respeito, nos dizem Gondar e Canavêz (2022):
Não nos deparamos em Ferenczi com qualquer forma de dualismo resquí-
cio ainda encontrado no estilo freudiano – qualquer encadeamento alterna-
tivo, do tipo “ou isso ou aquilo”. O que encontramos (...) são conexões que se
somam e se misturam, propondo múltiplas entradas no caminho” (p.193).
As autoras armam que Ferenczi valoriza as misturas, os interstícios e os
paradoxos, não adotando uma posição dualista e dialética, com o pressu-
posto da ideia de progresso linear e síntese. O pensamento ferencziano
rearma-se como pensamento do múltiplo, da divergência e da disjunção,
não calcado na lógica da contradição e das oposições próprias ao dualismo
freudiano, promovendo um desmonte da oposição natureza x cultura e de
outras, complementam as autoras. Assim, numa consideração não dialética,
encontramos em Ferenczi justamente uma lógica paradoxal, que apresenta
uma espécie de não-conclusão contraditória, segundo a qual não é preciso
escolher entre um dos elementos de tal contradição nem se chegar a um re-
sultado único. Gondar e Canavêz (2022, p.195) armam: “um paradoxo con-
siste na armação de dois sentidos contrários ao mesmo tempo. Eles fazem
coincidir, (...) regressão e progressão, trauma e criação, criar e destruir sem
que haja um terceiro termo, síntese ou formação de compromisso que me-
deie ou apazigue incompatibilidades”1. Ora, enquanto Freud procura cons-
truir uma teoria cientíca com todas as limitações impostas por tal projeto,
Ferenczi não teme afastar-se do estatuto cientíco de sua época e lançar-se
a experimentações, a m de minimizar o sofrimento dos pacientes difíceis,
questionando verdades incontestes, derrubando adequações e demolindo
limites clínicos e metapsicológicos.
1 Diversos trabalhos como o de Coelho
Junior (2015) apontam para a ideia de
um terceiro termo como síntese, mesmo
nos primórdios do desenvolvimento
psicanalítico. Em Freud tal noção se
apresenta na ideia do pai como terceiro,
na triangulação do Complexo de Édipo,
nas noções de pré-consciente, sintoma,
formação de compromisso, dentre outras.
Em Lacan, temos como exemplo o nome-
do-pai. No entanto, todas essas noções
estão referidas à lógica dual e conitante
do dualismo sobre a qual procuram
justamente “apaziguar incompatibilidades”,
o que aqui buscamos superar, como
veremos mais detidamente em breve.
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Ferenczi, então, implementou uma série de importantes técnicas as quais
não abordaremos detidamente neste trabalho, mas que se inserem no
contexto aqui apresentado, como a experiência de mutualidade, a partir do
“sentir com”, da ideia de sintonia e da análise mútua. Inaugurou, desta for-
ma, um novo lugar para o analista, agora presente numa posição mais ativa,
menos interpretativa e neutra e mais implicado, sobretudo, no campo do
afeto, isto é, afetando e sendo afetado pelo paciente e participando ativa-
mente do trabalho psíquico empreendido na análise, que deixa de ser tarefa
apenas do paciente. Deste modo, tendo Ferenczi como precursor, diversos
autores contemporâneos se debruçam sobre um novo modelo de clínica,
a partir do qual procuram traçar novos caminhos teóricos que possam lhe
oferecer sustentação, formulando, assim, novos conceitos para uma nova
clínica, reiterando que a clínica é soberana e imperiosa, na medida em que é
a partir dela que se inauguram novas formulações conceituais.
Nesta tentativa de construir subsídios teóricos para a compreensão dos “ca-
sos difíceis”, observamos que diversas contribuições de importantes auto-
res da clínica psicanalítica apontam para uma espécie de campo comum.
Tal campo diz respeito à superação da ideia de dualismo outrora aborda-
da. Desejamos agora melhor esclarecer o que se impõe como saída teórica
diante da superação aqui proposta da lógica dualista e de conito própria
à psicanálise clássica. Trata-se da concepção de um terceiro, numa acepção
especíca que, em nosso entendimento, não se constitui como um terceiro
elemento concebido como produto/síntese da interação dos dois elementos
que lhe antecedem, mas sim pela compreensão de que este terceiro possui
contornos mais complexos e precisa ser entendido como um processo, ter-
ritório, área, espaço. Deste modo, constitui-se como um campo, o que nos
remete à ideia de volume e tridimensionalidade, como a formação de um
lugar não localizável que abarca uma série de processos. Trata-se de algo
que, como dissemos, escapa à lógica dual e não se encerra no conflito entre
duas forças antagônicas ou na oposição dualista, tão cara à teoria freudiana,
mas se inscreve numa espécie de ordem paradoxal, na medida em que é a
armação de dois ou mais sentidos simultaneamente, que delineiam um
novo e complexo campo, donde reside a ideia subjacente de que “o todo é
maior que a soma das partes”. Tal ideia consiste, portanto, numa ampliação
do campo analítico, que desconstrói a relação de linearidade/oposição entre
dois elementos e que não se encerra neles, mas os abarca, sem promover
seu apagamento ou superação, isto é, sem chegar a uma conclusão nal e
resolutiva, consequência de uma espécie de síntese/formação de compro-
misso entre partes conitantes. Tal espaço/campo contempla a complexi-
dade que queremos evidenciar: algo novo que não pretende construir uma
síntese dialética, mas se constitui como um novo e fértil terreno, onde bro
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tam coisas novas e se produzem novos vínculos, saídas criativas, constituin-
do um “espaço potencial”, aludindo ao conceito winnicottiano.1
Parece-nos oportuno agora abordar como se apresenta clinicamente a ló-
gica da terceiridade, tal como a concebemos neste trabalho, isto é, não cir-
cunscrita à ideia de um terceiro elemento que surge como síntese do coni-
to entre elementos anteriores, nem como alternativa que busca a superação
de um dualismo pela promoção de uma saída resolutiva. Mas sim concebida
pela armação de algo que não se encerra nos elementos que a precedem,
lhe concedendo a complexidade de um campo analítico. Do ponto de vista
clínico, grosso modo, as concepções que nos interessam apontam para um
terceiro “elemento” que se produz a partir da interação analista-analisando,
entendida como uma interação complexa em que estão presentes corpos,
mentes e afetos de ambos. Além disso, abrange tudo que se produz, ob-
serva, escuta e sente neste campo/território analítico que, assim, pode ser
pensado como uma espécie de campo de forças: um campo de afetação.
Neste contexto, a produção deste terceiro - campo analítico - pressupõe o
que citamos acima a respeito da necessidade de construção de um novo
lugar para o analista, agora concebido em totalidade, como sujeito de afe-
tos que não mais se coloca apenas como anteparo às projeções transfe-
renciais do analisando, nem como sujeito do suposto saber, mestre deci-
frador de conteúdos inconscientes, nem mesmo como receptor passivo e
supostamente neutro de afetos que lhe são dirigidos por estar no lugar de
outrem, via transferência. Insistimos aqui neste ponto fundamental: a clíni-
ca contemporânea exige que o analista saia do lugar apenas interpretativo,
de mero analista da transferência e atue como um construtor de sentidos
em conjunto com o analisando, colocando-se para isso como objeto mas
também como sujeito desta relação, emprestando-lhe seu inconsciente, seu
corpo e seus afetos, na medida em que tais elementos participam direta-
mente do trabalho analítico, através da experiência mútua do “sentir com”,
pelo vínculo/presença justamente do que parece ter faltado na experiência
objetal primária destes pacientes. Esse novo lugar do analista produz, por
conseguinte, uma nova relação e uma nova experiência transferencial. Este
conjunto de coisas, por sua vez, resulta na construção deste território/cam-
po, desta área analítica produzida a partir deste novo modo de relação, não
calcada apenas no par analítico, mas nesse complexo campo transferencial
2 São diversas as acepções sobre o terceiro
na psicanálise. Como exemplo disto,
encontramos em Coelho Junior (2015) a
apresentação de nove diferentes “guras
da terceiridade”. Por isso é fundamental
esclarecer que nosso trabalho não tem o
objetivo de percorrer diversas teorizações
a respeito da terceiridade. Nossa escolha
teórica toma como base autores que
acreditamos se aproximar de nossa
acepção do terceiro tal como a denimos
no presente artigo.
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em que talvez se possa produzir ligação, simbolização, novos sentidos ou
apenas – e não o armamos como se pouco fosse - oferecer ao analisando
uma nova experiência de relação, acolhimento, mutualidade e vínculo pois,
como nos diz Ferenczi, o que cura é o afeto.
O surgimento teórico e conceitual deste campo como terceiro “elemento”,
tomado como um espaço e constituído numa espécie de ordem paradoxal,
como dissemos, é precedido, a nosso ver, por esta nova e ampliada concep-
ção de clínica psicanalítica inaugurada por Ferenczi. Para fundamentar isto,
traremos a seguir algumas contribuições teórico-clínicas de outros autores
sobre as quais acreditamos poder estabelecer costuras a respeito do fazer
psicanalítico nos dias atuais e que se coadunam com a ideia central deste
artigo. Ainda que guardem diferenças conceituais entre si, o terreno comum
que encontramos entre estes autores diz respeito a pelo menos alguns dos
seguintes aspectos que nos interessam: (I) a noção teórica de um terceiro,
entendido não como mero elemento mas como um processo, espaço, área
e fundamentado sobre uma ordem paradoxal, que transcende uma lógica
dual ou síntese dialética, seus elementos e a ideia de conflito; (II) a ideia de
que tal concepção teórica advém de uma insuficiência ou inadequação do
arcabouço teórico-clínico psicanalítico clássico; (III) a armação de que o ter-
ceiro que forma essa ordem paradoxal se apresenta em aspectos defensi-
vos próprios a situações de trauma e ruptura, embora também se evidencie
no desenvolvimento denominado normal; (IV) a noção de um trauma preco-
ce, comumente relacionado a falhas do objeto como determinante de uma
patologia contemporânea, o que sublinharia a importância de construção
deste campo fecundo e paradoxal da terceiridade na situação analítica.
A teoria de Winnicott se coaduna ao que tentamos desenvolver neste tra-
balho. Sua obra é marcada tanto pela noção de paradoxo como pela ideia
de uma espécie de terceiro elemento, denido por ele como um espaço.
Estamos aqui nos referindo à noção de transicionalidade (2000). Suas no-
ções de objeto, fenômeno e espaço transicionais apontam para a existência
de um terceiro elemento que constitui um espaço, uma área intermediária
constituída no entre, num território que não é nem externo nem interno,
mas, paradoxalmente, é ambos. Dentro do campo transicional que propõe,
encontramos uma série de paradoxos comuns ao próprio processo de de-
senvolvimento que, por isso mesmo, não devem ser resolvidos, mas aceitos
e tolerados e constituem essa área intermediária que funda os limites in-
terno/externo, eu/não-eu, limites estes que não se constituem como uma
linha tênue entre tais elementos, mas como um espaço de transição, o qual
garante a ideia de continuidade. Alguns exemplos de paradoxos próprios ao
processo de maturação encontrados na obra de Winnicott dizem respeito à
armação de que o objeto transicional é e não é o seio; à denição da capa-
cidade de estar só na presença do outro (1983); à noção de ilusão (2000), se-
gundo a qual o objeto para ser criado, deve ser encontrado ou, ainda; à ideia
da primeira posse de um objeto não-eu, denido como um objeto que não
está dentro da criança nem fora dela, mas num espaço utópico, no limite
entre o interno e o externo, no qual se localizam processos não localizáveis.
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Winnicott também considera o uso de defesas paradoxais que se apresen-
tam se o ambiente não foi sucientemente bom de modo a assegurar uma
experiência de ilusão, construção de um espaço potencial e continuidade do
ser. Neste caso o sujeito vive experiências traumáticas de ruptura e descon-
tinuidade que o levam às agonias impensáveis e ao medo do colapso (1994).
Na tentativa de elaborar tais experiências, o sujeito faz uso das defesas pa-
radoxais, que promovem uma suspensão da oposição primário/secundário,
interno/externo, estabelecendo, assim, uma espécie de ponte acima das
descontinuidades, na tentativa de inauguração de um espaço intermediário
que possa abarcar seus fenômenos psíquicos e garantir uma experiência de
continuidade do ser.
Outro autor que vem ao encontro de nossa exposição é Thomas Ogden
(1996), que aborda a questão da terceiridade com o conceito de terceiro
analítico. Antes de explorarmos suas complexas formulações a respeito da
terceiridade, se faz imprescindível um esclarecimento acerca de uma apa-
rente contradição, o que nos exigirá certo desvio. Coelho Junior (2015) ar-
ma que a teoria da terceiridade de Ogden se fundamenta na dialética, mas
considera que a concepção losóca que melhor daria sustentação às ideias
do autor seria a “dialética sem síntese”1. De fato, ao longo de seu livro, Og-
den rearma repetidamente a dialética como fundamento de suas ideias.
Arriscamos armar que a tese que sustenta sua argumentação se baseia
precisamente numa proposta dialética de clínica, a qual representa um rom-
pimento com o modelo vigente até então do psicanalisar, o que se coaduna
com o que aqui propomos.2 Mas o que seria essa “dialética sem
3 Vale ressaltar que embora tal concepção
losóca seja atribuída a Merleau-Ponty,
ela teria se originado das ideias do lósofo
Heráclito de Éfeso. Considerado o pai da
dialética, armava que a realidade possui
uma pluralidade de opostos que não se
encontram em conito, mas numa relação
de complementaridade, o que lhes confere
uma unidade básica (Marcondes, 2007).
4 Sobre isto, Coelho Junior (2015)
ressalta que Ogden e muitos outros
autores formularam suas teorias sobre
o terceiro sob a inuência de uma visão
intersubjetivista, preconizada basicamente
por expoentes da escola inglesa e seus
leitores, buscando criticar as relações de
objeto e o predomínio das relações duais
próprias à chamada two body psychology,
inaugurando, então, o conceito de terceiro.
Do mesmo modo, as teorias das relações
objetais teriam surgido como proposta
alternativa à teoria clássica e solipsista, cuja
ênfase era o intrapsíquico, denominada one
body psychology.
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síntese” na qual se fundamentaria sua teoria do terceiro analítico? Como
compreendê-la no contexto filosófico aqui proposto? Estaria ela, então, dis-
tante da síntese dialética do dualismo freudiano? Em que contradiz ou se
assemelha ao que aqui formulamos como ordem paradoxal? É, principal-
mente, a partir do texto do próprio Ogden que responderemos tais indaga-
ções, mas adiantamos aqui o que nossa pesquisa demonstrou: a nosso
ver, Coelho Junior (2015) cunha uma ótima expressão para se referir ao que
podemos inferir como o posicionamento losóco de Ogden. Embora se
utilize do termo dialética inúmeras vezes em sua obra, ca evidente por sua
própria construção textual que sua proposta é a inauguração de um novo
olhar sobre a situação analítica, que difere da dialética própria ao dualismo
e às oposições encontradas no texto freudiano, com base na dinâmica do
conito e condensada pelo trinômio tese-antítese-síntese/conhecimento
presumido-ceticismo-conhecimento aprimorado. A dialética construída por
Ogden nos parece referida à concepção hegeliana, e procura, justamente,
promover um rompimento com a ideia de síntese, como alertou Coelho Ju-
nior (2015). Neste sentido, se aproxima da base losóca que aqui propo-
mos: a concepção de paradoxo.
Para melhor situarmos a dialética de Hegel como fundamento losóco do
conceito de terceiro analítico, nos utilizaremos do termo Aufhebung, utilizado
pelo lósofo alemão, o qual evidencia que sua dialética rompe com qual-
quer projeto de síntese próprio às concepções dialéticas da losoa anti-
ga.1 Trata-se de um substantivo derivado do verbo Aufheben, que possui três
signicados: (I) cancelar, negar, anular; (II) preservar; (III) elevar a um nível
superior. O entendimento do signicado a que se refere o termo depende
do contexto em que está inserido. Entretanto, na obra de Hegel tal termo
possui os três sentidos simultaneamente. Isto é, a dialética hegeliana não é
apenas um método, é a estrutura da coisa em seu devir: as coisas se cons-
tituem dialeticamente, por um processo histórico, temporal e progressivo,
que compõe uma espécie de movimento, em que etapas sucessivas não
anulam as anteriores, mas as superam ao mesmo tempo em que rear-
mam sua existência, gerando uma transformação que inclui todos os está-
gios do processo.2
O próprio Ogden (1996) aborda a denição de Aufhebung trazida por Hyppo-
lite: segundo a qual, trata-se de um termo da dialética de Hegel, que signica
simultaneamente negar, suprimir e conservar, e fundamentalmente erguer
- mas o faz a partir do uso de Freud do termo em “A negativa” (Freud, 1925).
5 Termo de difícil tradução, geralmente
é utilizado o neologismo “suprassunção”
como referência a ele em português.
6 Como exemplo ilustrativo, comumente é
usado o exemplo do trigo que precisa (I) ser
negado em sua forma natural, para fazer-se
pão, (II) permanecer preservado, na medida
em que constitui o pão, (III) ser elevado/
transformado numa nova forma, o pão.
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Ogden considera que Freud propõe uma interpretação dialética a partir da
postulação da noção de Verneinung (negativa). Embora não possamos ar-
mar isso, a nosso ver, é mais provável que Freud tenha feito uso do ter-
mo alemão no sentido de cancelamento/negação. Contudo, concordamos
com Ogden que a noção de negativa cunhada por Freud comporta inega-
velmente uma dimensão dialética, mas acreditamos que o faça de forma
bem especíca: pela armação de algo a partir de sua negação, o que não
se insere completamente na lógica hegeliana do termo, uma vez que não
comporta o signicado de erguer/elevar a um outro nível ou produzir uma
transformação. De qualquer modo, ainda que possamos armar categori-
camente o caráter inovador e disruptivo de sua obra, isso não livra Freud
da centralidade de um pensamento linear e dualista como o condutor de
sua produção, como ressalta o próprio Ogden (1996) ao armar que Freud
luta “contra as limitações da linearidade de pensamento exigida pelas no-
ções positivistas de causalidade” (p.13). A seguir, entretanto, comenta que
“os exemplos de como Freud tenta formular suas ideias em termos lineares,
diacrônicos, são inúmeros e se espalham por toda sua obra” (p.13). Comple-
menta o argumento citando alguns exemplos em que o autor procurou pro-
mover uma progressão: do inconsciente para a consciência; do princípio de
prazer para o princípio de realidade; do Id para o Ego; do processo primário
para o processo secundário. A crítica de Ogden a este respeito desconstrói a
ideia linear de progresso e rearma a lógica paradoxal e da dialética própria
à suprassunção, como vericamos em sua armativa de que
Tal linearidade de pensamento obscurece o que acredito ser a natureza ra-
dical do projeto psicanalítico, ou seja, a noção de que o sujeito (...) pode ser
conceituado como resultado de um processo contínuo no qual (...) é simul-
taneamente constituído e descentrado de si mesmo por meio da negação
e da preservação da inter-relação dialética entre consciência e inconsciente
(1996, p.13).
São diversos os trechos em que se evidencia a aproximação de suas ideias
do que chamamos de paradoxo, através da expressão “ordem paradoxal”. A
construção do próprio texto se utiliza de uma série de recursos que apontam
direta ou indiretamente para este posicionamento, como vemos na analo-
gia que constrói entre analista-analisando e escritor-leitor, armando que
o que se passa entre esses dois sujeitos não se trata de ventriloquia, mas
de um evento humano complexo. Arma, então, que um terceiro sujeito é
criado na experiência de ler, um sujeito não redutível nem ao escritor nem
ao leitor. A criação deste terceiro sujeito seria a essência da experiência de
ler, assim como também o núcleo da experiência psicanalítica1. Mais adian
7 O autor já inicia o texto nos advertindo que
sua proposta diz respeito a um terceiro que
se forma a partir dos dois elementos iniciais,
porém não os apaga ou neles se encerra, mas
produz uma terceiridade que não é se constitui
como eles próprios, mas algo novo que deles
advém. São diversos os trechos em que esta
ideia se evidencia, mas aqui citamos apenas
alguns, a m de sustentar nosso argumento.
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te Ogden rearma a complexidade e caráter dialético no sentido hegeliano
que examinamos e, portanto, também histórico, da experiência de leitura
e, analogamente, de análise. Arma que escritor e leitor não criam um ao
outro de modo a-histórico: “O presente no qual o terceiro sujeito surge não
é simplesmente o momento atual, mas o “momento presente do passado”
(...) o qual (o passado) fala por intermédio de nós tanto quanto falamos um
por intermédio do outro” (1996, p.2). Adiante, diz que o leitor transformará
o que em outra coisa que não são as palavras que lera. Expressando tal
ideia em termos de experiência analítica, arma que
... os sujeitos da análise (...) mantêm uma relação dialética entre si. Dos ele-
mentos da dialética entre sujeito e objeto começa a emergir um novo con-
junto que (...) se revela uma nova fonte de tensão dialética. O processo ana-
lítico que cria o analista e o analisando é um processo no qual o analisando
não é simplesmente o sujeito da investigação analítica... (1996, p.2).
O autor dá continuidade ao raciocínio evidenciando que o analista, por sua
vez, não é apenas sujeito observador deste trabalho, pois sua experiência
subjetiva também compõe tal esforço e constitui o único caminho possível
para conhecer o que se está buscando entender. A guisa de conclusão, Og-
den resume sua ideia de que
... a psicanálise pode ser pensada como um esforço para vivenciar, com-
preender e descrever a natureza mutativa da dialética gerada pela criação
e negação do analista pelo analisando e do analisando pelo analista (...). A
tensão dialética gerada por essa negação e esse reconhecimento criativos
não constitui uma questão a ser respondida, um enigma a ser resolvido (...),
não tem uma resposta. (1996, p.5).
Agora que estamos certos de que a dialética utilizada por Ogden (1996) se
coaduna com a tese que aqui propomos, podemos passar a um breve exa-
me de sua conceituação do terceiro analítico intersubjetivo1, nomeação que
reitera sua liação aos teóricos da intersubjetividade. Na medida em que
percorremos as formulações do autor acerca deste conceito, descortinamos
o quanto sua concepção a respeito de uma psicanálise contemporânea di-
verge contundentemente da psicanálise clássica freudiana. Encontramos
em seu texto a consideração de que o pensamento psicanalítico contem-
porâneo não se encontra mais às voltas com as dinâmicas intrapsíquicas
nem com a ideia do analista enquanto uma tela branca e neutra, puro re-
ceptor de projeções do analisando. Pelo contrário, ele desenvolveu-se para
um ponto em que não se pode mais considerar “analista e analisando como
sujeitos separados que tomam um ao outro como objetos” (1996, p.58). A
8 A expressão “terceiro analítico
intersubjetivo”, geralmente utilizada de
forma resumida, é citada pelo autor em
nota de rodapé da página 60, onde faz o
importante esclarecimento de que seu
inovador conceito não possui nenhuma
relação com o terceiro edípico/simbólico.
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desconstrução de uma compreensão solipsista e intrapsíquica e de um en-
tendimento clássico da relação transferencial vai sendo evidenciada pela
proposta de uma nova concepção, calcada na dialética intersubjetivista. Esta
abarca as subjetividades de analista e analisando e um campo que se for-
ma como um terceiro a partir de sua interação, rearmando-se como uma
ordem paradoxal na medida em que se constitui pela experiência dialéti-
ca de estar simultaneamente no terreno das subjetividades do par analis-
ta/analisando e no campo da intersubjetividade engendrado por elas o
terceiro analítico - mas que dialeticamente, as engendram. Deste modo, a
intersubjetividade e as subjetividades individuais de analista e analisando
criam, negam e preservam umas às outras. Há um movimento dialético de
subjetividade e intersubjetividade na situação analítica e ambas constituem
o terceiro analítico. Ou seja, segundo o autor, o processo analítico reete a
inter-relação de três subjetividades: do analista, do analisando e do tercei-
ro-analítico, que consiste numa criação do analista e do analisando ao mes-
mo tempo que ambos são criados pelo terceiro analítico. Neste sentido, não
existe analisando, analista ou mesmo análise na ausência do terceiro, nem
terceiro sem análise. Para Ogden, portanto, a própria experiência analítica
se passa dentro do terceiro-analítico, ou seja, é produzida por ele. Isto é, ele
a constitui e, dialeticamente, é também constituído por ela. A “experiência
analítica ocorre no vértice do passado e do presente e envolve um ‘passado’
que está sendo recriado (...) por meio de uma experiência produzida entre
analista e analisando (isto é, dentro do terceiro-analítico) ” (1996, p.72).
Passaremos agora a alguns aspectos a respeito do terceiro analítico que
evidenciam o rompimento que citamos acima com a psicanálise clássica. A
criação do terceiro analítico se realiza conjuntamente e engloba a história
pessoal e a constituição psicossomática de analisando e analista. Assim,
nenhum sentimento, pensamento ou mesmo sensação pode ser conside-
rado como estritamente pessoal, pois tudo que se passa na experiência
analítica é criado ou ao menos modicado pelo terceiro analítico, não per-
manecendo, assim, como era fora de tal contexto. O pessoal, denido pelo
autor como o individualmente subjetivo é, assim, alterado pela experiência
do terceiro-analítico. Já na psicanálise clássica, o analista deveria superar ou
afastar sua atividade psicológica pessoal, a m de concentrar sua atenção
no analisando. Ogden critica isto, armando que uma concepção de expe-
riência do analista que descarta tais fatos clínicos - o pessoal - o leva a igno-
rar ou reduzir grande parte de sua experiência com o analisando e conclui:
“se quisermos ser analistas num sentido pleno, temos de tentar consciente-
mente fazer inclusive esse aspecto de nós mesmos participar do processo
analítico” (1996, p.79).
Tal consideração reconhece uma nova posição para o analista, como fa-
zia Ferenczi, negando-lhe uma posição de neutralidade e inserindo-o como
parte essencial do processo analítico. Implicado subjetivamente, possui pre-
sença ativa e integrante do trabalho analítico, com seu aparelho de pensar
pensamentos, seus sentimentos e até sensações corporais, sendo parte
constitutiva do terceiro analítico. Tal posição transcende a ideia do papel
do analista como mero decifrador da relação transferencial e contratransfe
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rencial – esta última relacionada ao que lhe suscita o paciente e o conteúdo
da análise: “acredito que o uso do termo contratransferência para fazer re-
ferência a tudo que o analista pensa, sente e vivencia sensorialmente obs-
curece a simultaneidade da dialética (...) da subjetividade individual e inter-
subjetividade” (1996, p.70). Tal posicionamento consistiria numa espécie de
rearmação da individualidade e do subjetivismo sobre a intersubjetividade
própria ao terceiro analítico. O analista permaneceria num lugar de suposta
neutralidade. Contudo, na medida em que consideramos o conceito de ter-
ceiro analítico, nenhum dos polos da dialética existe de forma pura, isto é,
analista e analisando não se apresentam como entidades separadas, mas
sim como criação da intersubjetividade analítica. Assim, em oposição à téc-
nica clássica, Ogden considera que não cabe ao analista desembaraçar os
elementos constitutivos da relação, num esforço para determinar as quali-
dades de cada indivíduo - analista e analisando. Pelo contrário, a tarefa ana-
lítica que propõe envolve uma tentativa de se debruçar sobre a experiência
de inter-relação dialética das subjetividades e da intersubjetividade constitu-
tivas do terceiro analítico a favor do trabalho de análise1.
Embora não se rera ao terceiro analítico como um espaço, área ou campo,
Ogden arma que este se forma a partir de dois elementos que lhe ante-
cedem, sem apagá-los, mantendo características paradoxais e constituindo
uma ampliação do analítico. Este, é entendido como um lugar não locali-
zável que abarca tudo que se passa no contexto analítico e o engendra, ao
mesmo tempo em que é por ele engendrado, como os pensamentos, sen-
timentos e sensações de analisando, analista e do terceiro analítico. Assim,
propõe um rompimento com a dinâmica dual própria à psicanálise clássica,
propondo um entendimento que lança luz sobre a clínica contemporânea.
Não podemos deixar de citar André Green, outro importante autor em cuja
obra encontramos conceitos teóricos que apontam para um terceiro ele-
mento, como vemos nas noções de terceiridade, processo terciário e em sua
“teoria da triangulação generalizada a um sujeito substituível”. Contudo, so-
mos bastante críticos à sua teorização sobre o terceiro, pois esta possui uma
base bastante calcada na metapsicologia e na simbolização e, neste sentido,
nos parece mais limitada e menos inovadora que a proposta de Ogden. O
desenvolvimento de suas formulações acerca do terceiro nos parece advir
de dois fatores.
9 No capítulo sobre o terceiro analítico,
Ogden (1996) se utiliza de duas vinhetas
clínicas para exemplicar como o terceiro
analítico se manifesta clinicamente e pode
ser utilizado no trabalho de análise. O autor
traz experiências pessoais, sentimentos e
sensações que zeram parte do terceiro
analítico nestes dois casos e discorre sobre
como fez uso deste material na análise de
tais pacientes.
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O primeiro se refere à crítica de certo apagamento das triangulações edi-
pianas, o que atribui sobretudo ao crescimento dos estudos psicanalíticos
das relações pré-genitais/pré-objetais. Segundo ele, a comunidade psica-
nalítica, muito inuenciada especialmente pelos métodos de Mahler de ob-
servação mãe-bebe, teria enfatizado este momento dual, anterior à relação
objetal triangular edípica, sublinhando as angústias de separação e intrusão
correlatas ao período pré-objetal e deixando de lado o complexo edípico
e sua correspondente angústia de castração1. Embora Green (2008) arme
reconhecer a importância dos estudos sobre a fase pré-genital, considera
uma ilusão declarar que o pai como terceiro não participe dos processos
psíquicos em tal fase. O autor nos parece até mesmo ressentido com o
fato do pai e da função paterna terem sido relegados a último plano (2008),
não admitindo a possibilidade de ausência do pai como terceiro na relação
mãe-bebê. Atribui, então, a Lacan o grande mérito de ter reestabelecido a
importância da função paterna, não somente nas neuroses, mas em toda
patologia: “Acompanhando as reexões de Lacan, eu me senti sensibilizado
pela ideia de que as relações triangulares haviam sido negligenciadas e arbi-
trariamente restritas ao complexo de Édipo. Muito mais do que uma função,
tratava-se de uma metáfora paterna” (2008, p.230). Green parte, então, do
resgate do terceiro inicialmente via complexo de Édipo - tema mais aborda-
do em seu artigo aqui referido - para promover uma ampliação a respeito
do terceiro da triangulação, desta vez não circunscrito ao complexo edípico.
Assim, o autor se afasta - mas nem tanto - da concepção freudiana clássica
de triangulação. Deste modo, para resgatar o terceiro da triangulação, mas
supostamente escapar do aprisionamento edipiano, propõe a ideia de que,
mesmo na relação dual mãe-bebê, o pai se presentica, se não enquanto
pessoa, enquanto presença no psiquismo materno. Daí se origina sua teoria
da triangulação generalizada a um terceiro substituível, segundo a qual não
necessariamente o pai constituirá o terceiro da relação triangular, podendo
tal lugar ser ocupado por qualquer objeto que se constitua como o outro do
objeto (2008). Isto é, trata-se de uma relação ternária formada por sujeito,
objeto e o outro do objeto, donde este último pode variar, via deslocamento,
mas mantendo a estrutura triangular.
O segundo fator que certamente contribuiu para Green lançar-se à concei
10 Nos parece que a crítica de Green a
respeito das relações pré-genitais duais e
sua tentativa de resgatar um terceiro - ainda
que não edipiano, mas que garantiria o
processo de triangulação - está referida ao
que armou Coelho Junior (2015) a respeito
do surgimento das teorias da terceiridade
em psicanálise congurarem-se como
resposta crítica à chamada two body
psychology, citada anteriormente.
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tuação da terceiridade e do qual compartilhamos, consiste numa crítica ao
dualismo freudiano, marcado por uma oposição binária. Excetuando-se o
próprio complexo de Édipo e as teorias das instâncias, em que a terceiridade
se manifesta de forma clara e incontornável:
... na estrutura geral dos elementos da teoria freudiana se constata que a
dualidade é a regra: dualismo pulsional, pares de opostos, recalcamento
primário e secundário (...). Não se poderia terminar de listar o número de
noções capitais que são em número de dois e que são embebidas pelas
relações de (...) antagonismo, numa dialética sutil (Green, 2008, p.232).
Alinhado ao posicionamento crítico que buscou fazer frente à two body psy-
chology, como citamos, Green (2008) infere que quando certo grau de
complexidade é atingido, a dualidade parece tornar-se insuciente para dar
conta das relações, o que leva à necessidade de se apelar às relações triá-
dicas. Curiosamente, em seu desenvolvimento sobre a terceiridade, Green,
que primeiro reconhecera em Lacan uma boia de salvação a respeito do res-
gate do terceiro através das noções de função e metáfora paterna, procura
em seguida livrar-se dele, embrenhando-se numa trama por si próprio teci-
da. Buscando sair do que considera o enclausuramento para o qual Lacan
havia nos sequestrado referindo-se à concepção lacaniana da linguagem
apenas como sistema de representação de palavra - apela à obra do lósofo
Charles S. Peirce, o qual incluirá a representação de coisa a partir de uma
articulação entre linguagem e semiótica. Assim, apenas a contribuição de
Peirce levou Green de fato à sua concepção de terceiridade. Talvez isso se
deva, em parte, ao fato da própria teoria de Peirce se fundamentar numa
lógica terciária. Para ele, a linguagem diz respeito a todo e qualquer fenô-
meno que traduza uma coisa em outra coisa por intermédio de mais uma,
a qual procura vincular às duas anteriores. Sua concepção de semiose com-
porta três categorias: (I) a primeiridade, formada pela qualidade perceptiva
ou sensação, diz respeito aquilo sobre o que não existe referência ainda, o
fenômeno em si, antes mesmo que seja percebido; (II) a secundidade, que
envolve resposta, reação, corresponde à percepção, consiste na constata-
ção da origem de uma sensação e do que a motivou e; (III) a terceiridade,
que é a representação, é aquilo que relaciona o fenômeno da secundidade
ao da primeiridade, é o que permite generalizar o fenômeno percebido. As-
sim, traduzindo sua complexa teoria em termos semióticos, “a terceiridade é
o que traz a primeiridade (...) para a interação com a secundidade, (...) intera-
ção essa realizada por meio do pensamento e de sua capacidade de estabe-
lecer leis e generalizações, ou seja, a ação do signo, sua força interpretante
(a terterceiridade) ”oelho Junior, 2015, p.188).
Vemos que as inuências de Lacan e Peirce no pensamento de Green sobre
o terceiro connam em larga escala sua teoria da terceiridade ao campo da
simbolização. A produção de um terceiro para Green provém dos limites da
dualidade e constitui o fundamento da atividade simbólica, estando interli-
gado ao sistema representacional, calcado no signo como representante de
um fenômeno, que nos leva a concebê-lo simbolicamente, mas com ênfase
na lógica triádica. O autor explica que o símbolo é denido como um objeto
cortado em dois, cujos portadores podiam juntar ambas as partes, mas
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arma que há, de fato, três objetos: os dois pedaços separados e o objeto
correspondente à junção deles dois, que constitui o terceiro (Green, 2008).
Ao aplicar tais ideias à situação analítica, arma que os impasses da relação
dual analista-analisando acabam por limitar as trocas numa circularidade
sem saída e deixa claro que apenas a produção de um terceiro constrói
o fundamento para a atividade simbólica: “Na sessão, o objeto analítico é
como esse terceiro, produto da reunião daqueles constituídos pelo anali-
sando e o analista” (2008, p.231). Assim fundamenta a ideia de processo ter-
ciário, o qual constitui um processo de ligação entre os processos primário
e secundário. O processo terciário seria responsável por promover a sim-
bolização no contexto analítico: “Se os processos terciários não existissem,
não haveria análise. O que quer dizer que se não houvesse mecanismos de
ligação entre processos primários e processos secundários, não vejo como
poderia efetuar-se a integração deles” (Green, 1990, p.36). Essa ligação de
que nos fala Green está no cerne de sua complexa teoria da representação,
a qual não abordaremos aqui. Mas desejamos ressaltar sua ideia de que é
pela ligação promovida pelo processo terciário que conteúdos do processo
primário são convertidos em palavras e adentram a cadeia da linguagem,
ligando-se assim ao processo secundário.
A preocupação de Green com os processos de simbolização faz sentido se
considerarmos suas pesquisas a respeito dos estados-limite, diante dos
quais arma que o analista não pode car passivo: precisa reestabelecer os
vínculos atacados pelo pensar do paciente, construindo ativamente o setting
como um espaço que busca transgredir a separação entre elementos, mas,
paradoxalmente, promovendo contornos, como propõe o conceito winnico-
ttiano de holding ou a noção bioniana de continente. Ainda que com ênfase
na questão da simbolização, Green promove uma ampliação a respeito do
lugar do analista e o implica diretamente no processo de simbolização, que
não mais seria função exclusiva do paciente, mas resultado dessas modica-
ções que pressupõem a presença do corpo, afeto e outros meios de escuta
que não a escuta em si, evidenciando o que se passa no setting para além da
representação de palavra. Neste contexto, propõe que o analista deve ter
ouvidos mais sensíveis ao arcaico e sobre ele se debruçar. Isto pressupõe
um retorno ao que dene como contato primitivo, isto é, o resgate de uma
comunicação corpo-a-corpo, deixada de lado quando se decretou que a co-
municação via palavra seria mais apropriada. Neste sentido, Green retoma
a ideia lacaniana da “palavra enquanto homicídio da coisa”, segundo a qual é
a partir da renúncia a uma comunicação corporal que a comunicação verbal
se estabeleceria, o que resultaria num processo de luto inexorável à consti-
tuição da palavra. O discurso analítico, portanto, é constituído por um pro-
cesso de luto proveniente do nascimento da palavra, o qual, segundo Green,
não devemos perfazer mas, pelo contrário, reiterar que é precisamente por
isso que o discurso analítico é necessariamente “palavra pulsionalizada”, é
“fala corporalizada” e, por esta razão, podemos armar que corpo e pala-
vra coexistem e se articulam no processo analítico. Deste modo, vimos que
Green apela mais uma vez a Lacan, mas justamente no que se refere à inclu-
são da representação de coisa que buscara em Peirce. Isto é,
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em seu entendimento, a representação de palavra não abarca toda a gama
de processos que se passam no setting, por isso a necessidade de se incluir
outros modos de representação, para além da palavra. A ideia lacaniana de
que a palavra é o homicídio de coisa denuncia que o simbólico é incapaz de
dar conta do real, armando sua limitação e, por conseguinte, a existência
de um resto, não-simbólico, não dizível, não circunscrito na representação
de palavra, mas que se apresenta na cena analítica como um resto a ser
simbolizado. Dessa maneira, apesar de el às inuências da metapsicologia
freudiana e à herança lacaniana a qual não consegue propriamente supe-
rar, Green desenvolve sua metapsicologia dos limites, indo além de seus an-
tecessores e propondo novas perspectivas na clínica dos estados-limite. Sua
concepção de terceiridade e processo terciário parte, então, de um lugar
de grande proximidade à metapsicologia freudiana para dele ir se afastan-
do, inicialmente pela própria conceituação de uma terceiridade que busca
dar conta daquilo que a dualidade freudiana não dera. Neste movimento,
inclui a ideia de um processo terciário que inclui os processos primário e
secundário, mas não se reduz a eles: pelo contrário, realiza um trabalho de
ligação essencial que, segundo ele, é condição sine qua non para o processo
analítico. Neste sentido, suas ideias rearmam nossa proposta de pensar
a necessidade de construção de um a mais na clínica, um terceiro que vai
além dos elementos primários a partir dos quais se constitui. Seu foco na
simbolização, relacionado à clínica dos estados-limite, evidencia outro fator
que desejamos destacar: o aspecto paradoxal que encontramos em suas
formulações, sobretudo representado pela ideia aqui abordada da dinâ-
mica presença-ausência.
Assim como Green, a partir de uma releitura da obra freudiana,
Kaës (2011) encontra referências ao terceiro, que denomina “intermediário”,
denido como aquele que permite ultrapassar o afastamento entre dois es-
paços e destaca as noções de pré-consciente, ego, sintoma, para-excitação
e formação de compromisso. A categoria do intermediário que propõe é
um processo de redução de oposições, que nda o conito e possui uma
função de ligação. Os processos intermediários exprimem um novo modo
de conceber as relações entre continuidade e ruptura, permanência e trans-
formação, e dizem respeito ao entre, àquilo que liga, que atua como ponte,
que não está nem aqui nem ali, mas também não é o meio. Constitui, assim,
uma articulação que advém, sobretudo a partir da noção de intersubjetivi-
dade e mostra sua riqueza e pertinência apenas a partir de “um dispositivo
derivado (...) do tratamento psicanalítico individual (...), no qual aparecem
mais facilmente as articulações entre o espaço intrapsíquico, (...) pluripsíqui-
co, intersubjetivo, coletivo, social…” (p.12), o que, diz ele, Freud não pôde
desenvolver.
Ao se referir aos estados-limite e chamar atenção sobre as falhas que se en-
contram nos sistemas de ligação, arma tratarem-se de “patologias do vín-
culo intersubjetivo”, do narcisismo, do originário e da simbolização primária
e propõe ainda a expressão “patologias dos processos intermediários” para
deles se referir. Do ponto de vista clínico corrobora a importância analítica
do vínculo e da construção de um espaço intersubjetivo na análise,
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justamente o que parece ter claudicado na constituição narcísica destes ca-
sos, devido a falhas desestruturantes do objeto. Assim, o analista atuaria
como um mediador, que não é o objeto, mas uma função simbolizante que
promove o reestabelecimento das continuidades psíquicas, a partir do que
denomina “análise transicional”, termo que evidencia sua linhagem à teoria
winnicottiana. Este tipo de análise e lugar de analista é condição para a supe-
ração de experiências prévias de ruptura e trauma, que levaram ao fracasso
das formações intermediárias acima citadas. O paradoxo que aí reside diz
respeito à necessidade de construção do intermediário exatamente devido
à sua falência, isto é: a análise transicional, denida como um espaço pelo
próprio uso deste termo, se constitui a partir de uma dimensão de ruptura
para promover sua superação, para estabelecer as formações intermediá-
rias falsamente constituídas nestes analisandos. Com este entendimento,
Kaës vai de uma concepção traumática de algo que não se deu adequada-
mente para uma compreensão elaborativa e criativa a respeito do terceiro
elemento, aqui denominado como intermediário.
Roussillon, por sua vez, se refere a “bases metapsicológicas da paradoxali-
dade e da comunicação paradoxal”, que resultariam de situações traumá-
ticas em função de falhas ambientais, sublinhando, portanto, seu aspecto
negativo. Cita como exemplo radical de processos psíquicos paradoxais a
psicose e a loucura. Dentre as experiências paradoxais que descreveu en-
contramos: (I) uma precoce comunicação corpo-a-corpo de caráter supe-
restimulante mediante um aparelho psíquico incipiente; (II) a simultaneida-
de de mensagens incompatíveis entre si; (III) um hiato entre o verbal e o
corporal que excede a capacidade de ligação do ego; (IV) a experiência de
que suas necessidades e pulsões são alternadamente superestimuladas e
frustradas, produzindo uma sobrecarga de excitações desorganizadas; (V) a
mudança repetida e imprevisível de humor do objeto sem causa aparente,
o que atuaria sobre a conabilidade da relação, constituindo uma comuni-
cação enlouquecedora; (VI) um afeto desorganizado que oscila entre amor
e ódio e bloqueia a constituição da ambivalência, fundando a gura de um
amor destruidor.
Todas estas experiências têm como efeito um prejuízo da montagem pul-
sional, constituindo uma força de desligamento entre as ligações psíquicas,
os afetos e as representações. Deste modo, os processos secundários são
subvertidos pelos primários, resultando numa desorganização pulsional e
afetiva que impede uma regulação econômica estável. Neste contexto há
uma experiência traumática permanente, própria a um funcionamento psí-
quico atípico, marcado pelo esmagamento do pré-consciente, falhas da pa-
ra-excitação e aniquilamento do ego e de sua capacidade organizadora, ou
seja, pela falência de elementos intermediários próprios ao funcionamento
normal.
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Considerações Finais
A partir de uma descrição a respeito da clínica contemporânea, evi-
denciamos ao longo desse trabalho a insuciência do modelo clínico freu-
diano das psiconeuroses bem como de sua metapsicologia para o atendi-
mento e a compreensão teórica dos denominados novos casos. Os analistas
contemporâneos, diante do desao de atender pacientes não enquadrados
na nosograa freudiana das psiconeuroses, precisaram aludir às contribui-
ções de autores pós-freudianos, os quais propuseram mudanças signicati-
vas tanto do ponto de vista clínico quanto teórico, para subsidiar sua prática.
Procuramos mostrar neste trabalho que o modelo freudiano dualis-
ta e calcado no conito se mostrou insuciente no atendimento dos pacien-
tes difíceis, o que levou a fundamentais inovações clínicas e teóricas. Nosso
objetivo principal consistiu em investigar algo para o que nossas pesquisas
apontavam: a conceituação de um novo campo analítico não calcado na
dualidade, na ideia de conito, progressão ou síntese. Tal campo se forma
como um terceiro, um espaço, área ou território, fundado a partir de ele-
mentos anteriores, numa espécie de ordem paradoxal, a qual não comporta
a superação de fases ou a escolha de um só caminho, mas é produto de
uma série de processos que acontecem em tal campo, fornecendo-lhe com-
plexidade e contornos tridimensionais. Para tal, abordamos a contribuição
de autores especícos e suas teorias sobre o terceiro, principalmente os que
nossa pesquisa mostrou estarem em consonância com a ideia que susten-
tamos, através de sua aderência a pelo menos alguns dos aspectos que ob-
servamos: a noção teórica de um terceiro, como concebido por nós; a ideia
de insuciência ou inadequação do arcabouço teórico-clínico psicanalítico
clássico; a armação de que o terceiro apresenta-se em aspectos defensivos
próprios a situações de trauma e ruptura, embora também se evidencie no
desenvolvimento denominado normal; a relação do terceiro com a noção
de trauma precoce devido a falhas do objeto como determinante de uma
patologia contemporânea. Vimos também como os subsídios teóricos a res-
peito do terceiro estão intimamente ligados à experiência clínica, e como os
novos casos suscitaram a necessidade de mudanças técnicas consideráveis,
evidenciando a inadequação do modelo clássico freudiano.
Acreditamos que ainda haja muito a ser pesquisado a respeito do
tema da terceiridade em psicanálise, o qual de forma alguma buscamos es-
gotar. Nos interessa, sobretudo, buscar alternativas à compreensão do mo-
delo representacional, calcado na ideia de simbolização. Inferimos também
que o terceiro tal como concebido por nós, como indicaram alguns autores
aqui citados, não se restringe à clínica do traumático, mas se presentica no
contexto analítico em geral, mesmo naqueles casos em que não estamos
diante do que a lógica normativa considera pacientes difíceis ou estados-li-
mite. Talvez seja profícuo universalizar a ideia de terceiro e, certamente, as
mudanças técnicas aqui abordadas para a clínica em geral, considerando os
inevitáveis limites da simbolização e a implicação do analista como pessoa,
numa relação horizontal, mútua e de afetação, a qual congura uma nova
ética para a psicanálise, aquela que defendemos e pela qual se dá a soma de
nossos esforços.
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